26/08/2019

RAQUEL VARELA

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A Fectrans,
 os camionistas e o fim do 
pacto social em Portugal

Uma cena magnífica de As Vinhas da Ira, de John Ford, acontece quando os membros da família Joad, que tinha perdido o seu pequeno negócio na crise de 1929, partem em busca de trabalho como assalariados na Califórnia. Com o dinheiro contado para sobreviver na viagem, abastecem gasolina a meio, num posto, onde as duas crianças da família pedem um doce ao avô. Este percebe, desconsolado, que não pode comprar pão e doces: só havia para o pão. Um camionista substitui-se discretamente ao avô, sem ele ver, e paga os doces, que são entregues às crianças encantadas. A empregada do posto sorri: “São os camionistas!”

Ford homenageava assim, em 1940, uma das maiores greves de sempre que reconstruiu o sindicalismo democrático nos EUA, nos anos 30, em plena Grande Depressão. A greve começa numa secção sindical de Minneapolis e torna-se numa greve geral, com vitórias duradouras. Alicerçou-se na época em lideranças revolucionárias, com democracia de base, confronto com os patrões e solidariedade entre trabalhadores.

Porém, o desfecho podia ter sido outro. Podiam ter sido esmagados, fortalecendo o sindicalismo corporativo que até aí vigorava. Na Costa Leste os Estivadores foram dizimados pela complacência com máfias locais, retratadas em Há Lodo no Cais; na Costa Oeste foram vitoriosos devido à solidariedade. O historiador canadiano Bryan Palmer foi estudar a greve de Minneapolis. No seu estudo interessou-se pouco pelo dia do início da greve, a vitória ou a derrota. Ele queria saber como foi o processo, e o que ficou para o futuro. Ao contrário do que tantos sindicalistas pensam, uma greve não se decreta – organiza-se. Não termina, deixa efeitos para sempre.

Esta greve deixa para o futuro ensinamentos para o todo o movimento sindical português. Desde logo para o SNMMP, o Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas, formado por trabalhadores que, percebendo que para impedir a brutal degradação das suas condições laborais e o aumento efetivo do horário de trabalho diário para as 10 horas com redução salarial tinham de fazer um novo sindicato. Também aprenderam a não menosprezar a força do Estado, que o Governo não é imparcial, que têm que construir pontes reais com outros sindicatos. Que precisam de uma organização interna forte e democrática, que não espere figuras providenciais– só eles podem ser porta vozes de si próprios.

Em resposta ao meu artigo no PÚBLICOa Fectrans argumentou que na famosa cláusula 61, que assinaram com a Antram, não existe isenção de horário. Mas o próprio Supremo Tribunal de Justiça (Ac. STJ n.º 10/2016 – publicado no DR) compara especificamente esta cláusula 61, ex. 74, – a tal que a Antram recusa reverter – a isenção de horário.

Além disto, o que a Fectrans não diz é que o acordo assinado estipula que podem ser obrigados a fazer 10 horas por dia (até mais, consoante o período de referência) que não são remuneradas como trabalho extraordinário. 

A realidade diz que fazem 14, 15 horas, porque os tempos de cargas e descargas, etc., não são contados pelas empresas como tempo de trabalho, mas de “disponibilidade”. Veja-se: o camião carrega, sai de Sines de manhã, chega ao Algarve, descarrega (fica o tacógrafo no “disponível”, mas não a trabalhar), e quando voltam ou ficam pelo caminho dormindo no camião ou vão dormir a casa perto dos seus e fazem na prática 14 ou 15 horas.

A lei equipara, por exemplo, o motorista de escola – que vai deixar as crianças de manhã e regressa para casa, isso não conta como tempo de trabalho –, ao de matérias perigosas, que vai descarregar ácido em Portimão e fica à espera de carregar e descarregar. Para a Antram isso não é tempo de trabalho, é “disponibilidade”. É como se um médico entre uma e outra consulta no Hospital não fosse pago, ficando lá 12 horas para dar 8 horas de consultas.


Nesta greve ficou a nu que uma parte dos portugueses trabalha de facto horas a fio que não recebe. Houve alguém que disse não. Os motoristas. Querem receber 900 euros de salário por 8 horas de trabalho. E que todo o trabalho realizado para além das 8 horas seja pago como trabalho extraordinário.

Volto às lições da luta. O Governo, o Estado, as Forças Armadas, os media, as centrais sindicais estiveram contra eles. O Governo aproveitou para impor um Estado musculado, esvaziando o direito à greve; a Fectrans aproveitou a greve que não apoiou para, à sua boleia, assinar um acordo e cantar vitória. No acordo assinado pela Fectrans foram introduzidas em Agosto as cláusulas que os motoristas já tinham ganho na greve anterior, em Abril (700 euros de salário base e não trabalhar aos domingos e feriados).

Os associados da Fectrans perceberam que ou lutam como sindicato, ou apoiam o Governo: as duas coisas juntas são incompatíveis. Perante à debandada de um sector inteiro das suas fileiras – os motoristas de matérias perigosas – a Fectrans respondeu “fazendo de UGT”: surfando a luta dos outros, sentou-se à mesa a assinar um acordo com o patronato no mesmo dia em que os grevistas estavam a ser perseguidos com uma requisição civil, substituídos por militares, baseada numa lei pré-constitucional de 1974, que levou a cenas inconcebíveis como motoristas a ser conduzidos pela GNR ao trabalho. Perante o meu artigo aqui no PÚBLICO afirmando que eles tinham assinado um acordo que prevê aumento do horário de trabalho e redução salarial, a Fectrans respondeu dizendo que era mentira, argumentando com a legalidade da cláusula 61 e que, se trabalham mais, façam queixa à ACT...

A Fectrans não pode desconhecer a realidade do sector, não pode colocar-se frente aos trabalhadores e suas reivindicações com a lei na mão, como se fosse o tribunal, a dizer que não têm razão porque a lei não conta o tempo de disponibilidade como trabalho. E, sobretudo, não pode ter a posição de dizer que há ilegalidades, mas que nada pode fazer além de pressionar o Governo para dar meios à ACT.

Se a questão é a de que são cometidas ilegalidades, o sindicato tem de arranjar maneiras de forçar os patrões à legalidade.  Se a Fectrans lutou contra o tempo de disponibilidade e não conseguiu, por que é que não continua a lutar?

Os outros sindicatos – deste novo sindicalismo independente – aparentemente fizeram um movimento de solidariedade inédito que não se via em Portugal desde os anos 80. Juntaram-se contra os serviços mínimos transformados em máximos, e antes contra os fura-greves em Setúbal, três requisições civis... Agora serviços mínimos numa low cost, a Ryanair, que não cumpre com a lei laboral (neste momento até discutem no Governo se aplicar serviços mínimos a uma “greve” que consiste em cumprir estritamente o horário de trabalho de oito horas!).

Numa outra cena de As Vinhas da Ira, Ford coloca um polícia da terra de onde partia a família Joad a explicar-lhes que eles tinham de ir para um acampamento de trabalho ilegal, sujeitar-se às más condições de trabalho, porque ele só estava a “cumprir a lei”. Ford relembrou-nos assim que há dois destinos: o da solidariedade daquele camionista, e o da sujeição recomendada por aquele polícia. Mas a escolha, ainda que difícil, é nossa.

É preciso defender o emprego como direito à vida e também como única forma de estar em pleno de igual para igual na sociedade. Com exceção de crianças, idosos e pessoas com problemas de saúde, o trabalho existente deve ser dividido por todos e ser bem remunerado – só assim há justiça social. Isso implica, claro, para a esquerda fazer um torcicolo ideológico face ao status quo em que embarcou: é preciso exigir a redução do horário de trabalho sem redução salarial, é preciso aumentos salariais que correspondem ao real custo de vida, e só isso também permitirá a sustentabilidade da segurança social.

IN "PÚBLICO"
24/08719

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