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A Fectrans,
os camionistas e o fim do
pacto social em Portugal
Uma cena magnífica de As Vinhas da Ira, de John
Ford, acontece quando os membros da família Joad, que tinha perdido o
seu pequeno negócio na crise de 1929, partem em busca de trabalho como
assalariados na Califórnia. Com o dinheiro contado para sobreviver na
viagem, abastecem gasolina a meio, num posto, onde as duas crianças da
família pedem um doce ao avô. Este percebe, desconsolado, que não pode
comprar pão e doces: só havia para o pão. Um camionista substitui-se
discretamente ao avô, sem ele ver, e paga os doces, que são entregues às
crianças encantadas. A empregada do posto sorri: “São os camionistas!”
Ford homenageava assim, em 1940, uma das maiores greves de sempre que
reconstruiu o sindicalismo democrático nos EUA, nos anos 30, em plena
Grande Depressão. A greve começa numa secção sindical de Minneapolis e
torna-se numa greve geral, com vitórias duradouras. Alicerçou-se na
época em lideranças revolucionárias, com democracia de base, confronto
com os patrões e solidariedade entre trabalhadores.
Porém, o desfecho podia ter sido outro. Podiam ter sido esmagados,
fortalecendo o sindicalismo corporativo que até aí vigorava. Na Costa
Leste os Estivadores foram dizimados pela complacência com máfias
locais, retratadas em Há Lodo no Cais; na Costa Oeste foram
vitoriosos devido à solidariedade. O historiador canadiano Bryan Palmer
foi estudar a greve de Minneapolis. No seu estudo interessou-se pouco
pelo dia do início da greve, a vitória ou a derrota. Ele queria saber
como foi o processo, e o que ficou para o futuro. Ao contrário do que
tantos sindicalistas pensam, uma greve não se decreta – organiza-se. Não
termina, deixa efeitos para sempre.
Esta greve deixa para o futuro ensinamentos para o todo o movimento sindical português. Desde logo para o SNMMP, o Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas, formado por trabalhadores
que, percebendo que para impedir a brutal degradação das suas condições
laborais e o aumento efetivo do horário de trabalho diário para as 10
horas com redução salarial tinham de fazer um novo sindicato. Também
aprenderam a não menosprezar a força do Estado, que o Governo não é
imparcial, que têm que construir pontes reais com outros sindicatos. Que
precisam de uma organização interna forte e democrática, que não espere
figuras providenciais– só eles podem ser porta vozes de si próprios.
Em resposta ao meu artigo no PÚBLICO, a Fectrans argumentou
que na famosa cláusula 61, que assinaram com a Antram, não existe
isenção de horário. Mas o próprio Supremo Tribunal de Justiça (Ac. STJ
n.º 10/2016 – publicado no DR) compara especificamente esta cláusula 61,
ex. 74, – a tal que a Antram recusa reverter – a isenção de horário.
Além
disto, o que a Fectrans não diz é que o acordo assinado estipula que
podem ser obrigados a fazer 10 horas por dia (até mais, consoante o
período de referência) que não são remuneradas como trabalho
extraordinário.
A realidade diz que fazem 14, 15 horas, porque os tempos
de cargas e descargas, etc., não são contados pelas empresas como tempo
de trabalho, mas de “disponibilidade”. Veja-se: o camião carrega, sai
de Sines de manhã, chega ao Algarve, descarrega (fica o tacógrafo no
“disponível”, mas não a trabalhar), e quando voltam ou ficam pelo
caminho dormindo no camião ou vão dormir a casa perto dos seus e fazem
na prática 14 ou 15 horas.
A lei equipara, por exemplo, o
motorista de escola – que vai deixar as crianças de manhã e regressa
para casa, isso não conta como tempo de trabalho –, ao de matérias
perigosas, que vai descarregar ácido em Portimão e fica à espera de
carregar e descarregar. Para a Antram isso não é tempo de trabalho, é
“disponibilidade”. É como se um médico entre uma e outra consulta no
Hospital não fosse pago, ficando lá 12 horas para dar 8 horas de
consultas.
Nesta greve ficou a nu que uma parte dos portugueses trabalha de facto horas a fio que não recebe. Houve alguém que disse não. Os motoristas. Querem receber 900 euros de salário por 8 horas de trabalho. E que todo o trabalho realizado para além das 8 horas seja pago como trabalho extraordinário.
Volto às lições da luta. O Governo, o Estado, as Forças Armadas, os media,
as centrais sindicais estiveram contra eles. O Governo aproveitou para
impor um Estado musculado, esvaziando o direito à greve; a Fectrans
aproveitou a greve que não apoiou para, à sua boleia, assinar um acordo e
cantar vitória. No acordo assinado pela Fectrans foram introduzidas em
Agosto as cláusulas que os motoristas já tinham ganho na greve anterior,
em Abril (700 euros de salário base e não trabalhar aos domingos e
feriados).
Os associados da Fectrans perceberam que ou lutam como
sindicato, ou apoiam o Governo: as duas coisas juntas são incompatíveis.
Perante à debandada de um sector inteiro das suas fileiras – os
motoristas de matérias perigosas – a Fectrans respondeu “fazendo de
UGT”: surfando a luta dos outros, sentou-se à mesa a assinar um acordo
com o patronato no mesmo dia em que os grevistas estavam a ser
perseguidos com uma requisição civil, substituídos por militares,
baseada numa lei pré-constitucional de 1974, que levou a cenas
inconcebíveis como motoristas a ser conduzidos pela GNR ao trabalho. Perante o meu artigo aqui no PÚBLICO
afirmando que eles tinham assinado um acordo que prevê aumento do
horário de trabalho e redução salarial, a Fectrans respondeu dizendo que
era mentira, argumentando com a legalidade da cláusula 61 e que, se
trabalham mais, façam queixa à ACT...
A Fectrans não pode
desconhecer a realidade do sector, não pode colocar-se frente aos
trabalhadores e suas reivindicações com a lei na mão, como se fosse o
tribunal, a dizer que não têm razão porque a lei não conta o tempo de
disponibilidade como trabalho. E, sobretudo, não pode ter a posição de
dizer que há ilegalidades, mas que nada pode fazer além de pressionar o
Governo para dar meios à ACT.
Se a questão é a de que são
cometidas ilegalidades, o sindicato tem de arranjar maneiras de forçar
os patrões à legalidade. Se a Fectrans lutou contra o tempo de
disponibilidade e não conseguiu, por que é que não continua a lutar?
Os
outros sindicatos – deste novo sindicalismo independente –
aparentemente fizeram um movimento de solidariedade inédito que não se
via em Portugal desde os anos 80. Juntaram-se contra os serviços mínimos
transformados em máximos, e antes contra os fura-greves em Setúbal,
três requisições civis... Agora serviços mínimos numa low cost, a Ryanair,
que não cumpre com a lei laboral (neste momento até discutem no Governo
se aplicar serviços mínimos a uma “greve” que consiste em cumprir
estritamente o horário de trabalho de oito horas!).
Numa outra cena de As Vinhas da Ira, Ford coloca um
polícia da terra de onde partia a família Joad a explicar-lhes que eles
tinham de ir para um acampamento de trabalho ilegal, sujeitar-se às más
condições de trabalho, porque ele só estava a “cumprir a lei”. Ford
relembrou-nos assim que há dois destinos: o da solidariedade daquele
camionista, e o da sujeição recomendada por aquele polícia. Mas a
escolha, ainda que difícil, é nossa.
É preciso defender o emprego
como direito à vida e também como única forma de estar em pleno de igual
para igual na sociedade. Com exceção de crianças, idosos e pessoas com
problemas de saúde, o trabalho existente deve ser dividido por todos e
ser bem remunerado – só assim há justiça social. Isso implica, claro,
para a esquerda fazer um torcicolo ideológico face ao status quo
em que embarcou: é preciso exigir a redução do horário de trabalho sem
redução salarial, é preciso aumentos salariais que correspondem ao real
custo de vida, e só isso também permitirá a sustentabilidade da
segurança social.
IN "PÚBLICO"
24/08719
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