14/08/2019

MARIA JOSÉ DA SILVEIRA NÚNCIO

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Como é que se lê “@”?

Receio que a vontade de condenar um patriarcado ancestral inegável nos esteja a fazer entrar numa deriva em que, à força de tanto forçar o acessório, acabamos por desvalorizar o que é realmente essencial: as persistentes desigualdades quotidianas em matéria de género.

Há pouco tempo li, no mais inusitado dos locais, mas, curiosamente, também num daqueles onde se descobrem grandes verdades sobre a vida e o respectivo sentido (a par de outros assuntos bem mais proverbiais) – a porta de uma casa de banho, mais exactamente na estação de comboios de Girona –, uma interessante troca de argumentos relativos à linguagem adequada para não ferir susceptibilidades de género.

Será neste ponto importante precisar que se tratava de uma casa de banho feminina, ou para mulheres, e o tema “em debate” na dita porta era o assédio sexual. Na troca de argumentos, por sinal muito interessante e devidamente imortalizada a marcador negro, alguém havia utilizado “@” para terminar uma palavra que se conjuga no masculino, tendo recebido, como resposta, a seguinte afirmação, que considerei excelente e que, por isso, passo a citar, na sua versão original: “es que “@” no existe: ¡es cuestión de lengua, no de patriarcado!”

Não sendo eu linguista, sou, pelo menos, uma leitora voraz, uma “escrevinhadora” frequente e uma fervorosa adepta de dicionários, gramáticas e prontuários da língua portuguesa.

E sou, também, feminista, uma vez que acredito, defendo e defenderei que, na sociedade, mulheres e homens devem ter iguais oportunidades de se realizar, em todo o seu potencial, enquanto pessoas.

Ora, sendo eu tudo isto, continuo a não compreender, e a arrepiar-me, sempre que me deparo com uma qualquer missiva que se inicia com a lapidar expressão “Car@s”. É que, genuinamente, não sei como se há-de ler semelhante coisa.

Ou melhor, julgo que sei: sendo eu mulher, lerei “Cara”, e sendo o outro parceiro, igualmente receptor da dita missiva, um homem, lerá “Caro”. E ficaremos, presume-se, profundamente felizes por termos sido, ambos, contemplados pelo autor da mensagem com a deferência da sua consideração e respeito, em condições da mais absoluta igualdade.

No que se refere à questão da gramática, julgo saber que na língua portuguesa a simples existência de um sujeito masculino num grupo maioritariamente feminino obriga à utilização do masculino, por exemplo, na conjugação dos adjectivos, pelo que, correctamente, dir-se-á (e escrever-se-á): “vós sois todos muito bonitos!”, mesmo que o “bonito” seja apenas um e as “bonitas” sejam cem…

De igual modo, os substantivos acabados em “nte”, como, por exemplo, “presidente” ou “chefe”, são, na sua origem, “neutros”, isto é, utilizados de forma igual e comum em matéria de designação de género, o que significa que diremos (e escreveremos), na forma correcta, de igual modo “A presidente” ou “O presidente”; “O chefe” ou “A chefe”.

É claro que existe o argumento de que a língua é viva e dinâmica e, por isso, alguns dicionários já incluem “chefa” ou “presidenta”, mas apenas como designações populares (e de moda?) para mulheres que chefiam ou presidem.

Agora, que haja mais “Os presidentes” do que “As presidentes” ou mais “Os chefes” do que “As chefes”, isso sim, deverá ser matéria de preocupação e, sobretudo, de acção!

E se rejeitamos os vieses de género na língua, por serem discriminatórios para as mulheres, o que faremos, e apenas a título de exemplos, com o substantivo “polícia”, que designa o profissional feminino e masculino? Passarão os homens a ser “polícios”? Ou diremos “a agenta policial” e o “agente policial”? E o que fazer, também, aos “colegas”? Passá-los a “colegos”, talvez, juntamente com os “jornalistos”…


* Doutorada em Sociologia, professora universitária,

IN "PÚBLICO"
06/08/19

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