.
*Investigador universitário
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
24/09/18
.
Viragem de página
na diplomacia
Os constantes falhanços diplomáticos de Londres e Washington, não há muito tempo faróis de sucesso no setor, degradam a diplomacia como instrumento essencial da política internacional e são um desafio enorme para os aliados. Portugal tem aqui um misto de preocupação com oportunidade. Talvez não tenha tão cedo condimentos tão propícios a uma boa mudança.
Esta semana mostrou uma vez mais o estado lastimável em que está a
diplomacia anglo-americana. Claro que não me refiro à esmagadora maioria
dos seus diplomatas espalhados pelo mundo ou a braços com os complexos
tempos que se vivem no Foreign Office e no State Department. Washington e
Londres continuam a ter das melhores escolas diplomáticas, misturando
tradição e inovação ao serviço dos interesses nacionais, quantas vezes
coincidentes com os interesses de um conjunto alargado de outros
Estados. Esta convergência, infelizmente, mudou radicalmente desde 2016.
Em
Londres, ninguém estava verdadeiramente preparado para lidar com o
Brexit e nem mesmo os mais brilhantes diplomatas têm conseguido acomodar
as convulsões provocadas pelos principais atores políticos. A definição
tardia de um roteiro de saída minimamente compreensível dificultou
sobremaneira o papel dos seus explicadores no estrangeiro. Pude
testemunhá-lo em várias ocasiões, tanto em Lisboa como noutras capitais
europeias. Além disso, a omnipresença das táticas perversas dentro do
governo britânico e nos dois principais partidos conduziu todo o
processo a uma desvalorização constante do essencial, com possíveis
danos irreparáveis ao interesse nacional mais básico: a própria unidade
do Reino Unido. A aventura do Brexit parece mais um desvario de amigos à volta de uma mesa num pub regado a cerveja do que um plano estratégico desenhado por uma maioria que lhe deu a legitimidade necessária. No
meio disto, ainda sem fim à vista, estão todos aqueles que,
discordando, têm de fazer o melhor para assegurar que a diplomacia
britânica não é mais um dano colateral do Brexit, tapando buracos,
repondo credibilidade, reconstruindo relações com terceiros.
É
para mim evidente que a qualidade dos seus diplomatas é muito superior à
da atual classe política britânica, mas isso não significa que tudo
mudará, ficando o essencial mais ou menos na mesma. Não será assim. A
começar na maneira como passaremos a olhar para a força política do
Reino Unido na política internacional, no meio dos choques económicos
provocados por uma saída sem acordo ou pela indefinição estratégica
resultante de eleições antecipadas. A ver pelo plano alternativo que
Boris Johnson tem ensaiado nas últimas semanas - contactos permanentes
com Trump na esperança de ali encontrar uma compensação aos bloqueios de
Paris e Berlim - o final desta história pode mesmo tornar o Reino Unido
(ou já nem isso) completamente no bolso negocial de um presidente
americano que trata pior os aliados do que os adversários. O triste
episódio da Gronelândia, que alguns quiseram atribuir a uma súbita
vocação estratégica de Trump pelo Ártico, só vem demonstrar que nenhum
aliado está a salvo de bullying.
Em Washington, o choque da máquina diplomática com a eleição de Trump
ainda não foi reposto. Os cortes orçamentais, a negligência no
preenchimento de lugares de topo e a total disfuncionalidade na
hierarquia de comando, excessivamente centrada nos humores do
presidente, quebraram uma longa tradição de continuidade estratégica na
diplomacia americana do pós-guerra, independentemente das maiorias no
Congresso ou do partido do chefe de Estado. Acresce a isto a voracidade
com que embaixadores americanos, muitos deles vindos da péssima tradição
das nomeações como prémio por serviços prestados em campanha, debitam
pensamentos incendiários nas redes sociais, achando que o padrão
presidencial lhes permite o devaneio. Afirmações de altos cargos
políticos têm impactos diplomáticos e em política, até prova em
contrário, a palavra conta e muito. A administração Trump podia até ser
portadora de várias conquistas para os seus inabaláveis interesses, na
esteira da natureza nacionalista que a guia, e toda esta postura
diplomática descabelada passaria para segundo plano em função do
reconhecimento dos seus méritos. Mas o que estes dois anos e meio
trouxeram foi uma mão cheia de nada.
Acordos rasgados sem
salvaguardas, uma reputação junto de aliados que está hoje na rua da
amargura, um vazio estratégico sem paralelo, mais vulnerabilidade à
insegurança interna pela condescendência com a lei das armas e o
terrorismo nacionalista, e muito menor influência nas dinâmicas de poder
globais. Basta ver como a gestão da tensão comercial com a China não
trouxe qualquer benefício aos EUA, tendo mesmo agravado a economia
nalguns Estados, ou como caminha descontrolado o nível crescente de
agressividade entre a Coreia do Sul e o Japão (que acabaram com a
partilha de intelligence nesta última semana), os dois maiores
pilares de Washington na Ásia, sem que os EUA conseguissem qualquer
intermediação. Aliás, foi humilhante assistir ao cancelamento das
reuniões dos ministros dos Negócios Estrangeiros japonês e sul-coreano
com Mike Pompeo, um sinal da baixa credibilidade que a América tem hoje
na região. Para isso muito ajudou o monumental logro que foram os
encontros com Kim Jong-un e a continuação ostensiva da nuclearização
pelo regime norte-coreano, ou o recente anúncio de Trump sobre um
hipotético convite do presidente indiano para mediar o conflito em
Caxemira, com Modi a desmentir de imediato. As tiradas
diplomáticas americanas e a influência no coração da sua prioridade
geoestratégica global é hoje mais fraca, mais pobre e um autêntico
embaraço aos seus mais legítimos interesses nacionais.
Em
boa verdade, nada disto é muito surpreendente. Mas, não o sendo, não
deixa de ter um custo, sobretudo para um Ocidente que muito tem confiado
nas capacidades de Londres e Washington e para aqueles que têm
assentado alianças estruturais com ambas, num fino equilíbrio com as
potências europeias continentais e outras esferas de interesses
espalhadas pelo mundo. É o caso de Portugal. A degradação da influência e
da imagem do Reino Unido e dos EUA junto dos aliados vai implicar mais
autonomia decisional. Na sua ausência, mais capacidade conjunta das
democracias europeias que ainda pautam as suas relações por confiança
mútua. Para atingir a primeira, vão ser precisos mais recursos
endógenos, mais investimento público e cooperação com privados. Não
é possível continuar a ter um Ministério dos Negócios Estrangeiros com
uma dotação orçamental das mais pobres da administração pública, quando
os vácuos diplomáticos internacionais abrem a porta à presença da nossa
boa diplomacia e, por via disso, à defesa dos nossos interesses, quantas
vezes em convergência com outros aliados. Para chegar à
segunda, é preciso quebrar o corporativismo diplomático, abri-lo à
sociedade e cruzá-lo com experiências externas que só o valorizam.
Tradição e inovação não podem ter um diálogo surdo. Em época de
desvalorização diplomática quem for pioneiro no ciclo oposto estará mais
capacitado para projetar o seu país, as suas empresas e os seus
melhores recursos. Todos saem a ganhar.
*Investigador universitário
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
24/09/18
.
Sem comentários:
Enviar um comentário