30/07/2019

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HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"Honra de juíza". 
Violência doméstica nada teve a 
ver com saída da juíza Sottomayor

Ao contrário do que tem sido noticiado, a proposta de redação do acórdão sobre a lei dos metadados, de que Clara Sottomayor era relatora, não mencionava violência doméstica. Magistrada saiu por considerar estar em causa a sua "honra de juíza". E já pediu audiência ao Conselho Superior de Magistratura para expor o caso.

Clara Sottomayor, cuja renúncia ao lugar de juíza conselheira no Tribunal Constitucional, onde estava desde 2016, por indicação do BE, foi conhecida na passada quinta-feira, pediu uma audiência ao Conselho Superior de Magistratura para expor o seu caso perante aquele órgão de governo e fiscalização da judicatura. A magistrada, que tem recusado comentar o assunto e voltou a exprimir essa recusa ao DN, considerará ter de se defender face às versões que foram postas a circular sobre os motivos da sua renúncia e, como está obrigada ao dever de reserva, precisa de autorização do CSM para poder falar do assunto. Estará em causa a defesa da sua "honra de juíza" e da sua independência perante os seus pares.
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Terá sido essa sua noção de honra e de independência que levou a magistrada a apresentar a renúncia, a primeira da história daquele órgão judicial criado pela revisão constitucional de 1982 e em funcionamento desde 1983. "Não posso ser relatora de um acórdão escrito por outros e ao qual foi retirado tudo o que era meu. É a minha honra de juíza", terá dito, de acordo com o que o DN conseguiu saber, perante o plenário de juízes.

Depois de a sua renúncia ter sido tornada pública pela SIC no próprio dia em que foi apresentada, surgiram nos media várias versões sobre os motivos, nas quais avulta a imputação de que teria, num projeto de acórdão sobre a chamada "lei dos metadados", feito referência à violência doméstica, imputação essa que tem sido relacionada com o que é descrito como "ativismo feminista". Teria sido então esse seu "ativismo feminista" a motivar o desacordo dos outros juízes face ao texto por si redigido, com a própria a recusar retirar tais considerandos do texto - o que teria mesmo motivado uma ameaça de processo disciplinar por parte do presidente do TC, Manuel da Costa Andrade.

Texto não tinha qualquer referência a violência doméstica
Ora ao DN foi garantido por fonte judicial que o projeto de acórdão assinado por Sottomayor não fazia qualquer referência a violência doméstica e que tudo o que se discutiu em relação ao texto tinha exclusivamente a ver com o assunto em causa - a lei dos metadados.

Esta lei diz respeito à autorização de acesso dos serviços de informações e segurança a dados de tráfego de comunicações, como a lista de chamadas e mensagens de texto (hora, destinatários, duração, assim como localização das chamadas, mas não conteúdo), fora do âmbito de processo criminal e passando por uma autorização "rápida" - num máximo de 72 horas -- concedida pelo Supremo Tribunal de Justiça, de suspeitos de terrorismo e outros crimes que se considere porem em risco a segurança do Estado.

O pedido de fiscalização da constitucionalidade da lei aprovada em 2017 -- e já considerada inconstitucional, por violar o artigo 34.º da Constituição, que garante a "inviolabilidade do domicílio e da correspondência" ("É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal"), em parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados -- foi assinado pelo BE, PCP e PEV.

O TC, recorde-se, já se pronunciara, em 2015, e precisamente por a autorização não ocorrer em sede de processo criminal, pela inconstitucionalidade de lei semelhante (mas onde não se prescrevia a autorização obrigatória do Supremo). Desta vez o plenário do TC dividiu-se mas os conselheiros a favor da inconstitucionalidade venceram, tendo Sottomayor, que fazia parte desse grupo, sido escolhida para redigir -- o que implica fundamentar --, o projeto de acórdão em causa.

Uma das versões que correu sobre o diferendo entre a juíza e os colegas foi relatada pelo Expresso e coincide com o confirmado ao DN: a juíza defenderia que o seu texto acolhia o que fora discutido e votado em plenário, e não aceitava alterações que lhe haviam sido comunicadas fora do plenário.

Uma posição que o constitucionalista e ex deputado do PSD Jorge Bacelar Gouveia apoiou em texto de opinião no Público no domingo, explicando como entende o funcionamento e tomada de decisão no âmbito daquele órgão: "As decisões do Tribunal Constitucional têm duas partes fundamentais: (i) a parte da decisão, na qual se decide se há ou não inconstitucionalidades (e ilegalidades, se for o caso); e (ii) a parte da fundamentação (não contando ainda com o chamado "relatório", uma primeiríssima parte descritiva sobre a sucessão de factos que antecedem a intervenção processual do TC). Como se trata de um órgão colegial, a deliberação é feita pela junção dos votos individuais dos seus 13 juízes nessas duas dimensões, devendo a fundamentação a escolher adequar-se à decisão tomada (por maioria ou por unanimidade)."

E prossegue a explicação: "Neste caminho, há alguém escolhido para elaborar um projeto de texto do acórdão, que tem uma "proposta de decisão e de fundamentação". Toda a liberdade tem de existir tanto na decisão como a fundamentação. É óbvio que só o próprio juiz escolhido pode escrever o texto do acórdão, que envolve um discurso jurídico de elevada complexidade, ainda que o coloque à consideração dos colegas, havendo muitos casos em que dessa discussão nasce um texto final aprimorado, mais completo e profundo."

Tribunal Constitucional viola princípio constitucional?
Mas, frisa, "o "dono do texto do acórdão" é sempre o seu relator, que tem o direito de fazer impor a sua vontade sobre o seu discurso escrito, o que nada tem de autoritário. É por isso que falar em processo disciplinar contra um juiz relator que, considerando a essencialidade de frases ou ideias para o texto que escreve, não aceita a imposição de frases ou palavras de outrem é esdrúxulo e indigno da independência dos juízes: a solução é a do voto contra a fundamentação, não decerto a de encontrar no facto uma infração disciplinar, com uma perspectiva visivelmente censória." No limite, escreve Bacelar Gouveia, pode "haver uma maioria a favor da decisão proposta no texto de um acórdão, e uma maioria contra a fundamentação que no mesmo reside. No limite mesmo, pode haver mesmo a mudança do relator."

Seria essa a solução que este constitucionalista preconizaria para tal discordância; perante o que é relatado, porém, conclui estar a pôr-se em causa o princípio constitucional da independência dos juízes, que frisa ter de ser também observada "intrajudicialmente": "[Essa independência] não é apenas ad extra, perante os outros poderes, públicos ou privados. Ela é também uma independência ad intra: vertical, com os juízes e tribunais superiores; e horizontal, no diálogo com os juízes colegas de um órgão colegial, sendo o caso. (...) Não deixa de ser confrangedor o ponto a que se chegou na redução da independência dos juízes, a ser verdadeira aquela notícia, pelos vistos já não podendo um juiz escolher as palavras de um texto que se apresenta da sua autoria, gravidade extrema por aqui tratar-se do Tribunal Constitucional."

O DN procurou ouvir sobre tudo isto o presidente do Tribunal Constitucional, Manuel da Costa Andrade, pedindo-lhe, por SMS, que confirmasse ou infirmasse o que tem sido noticiado sobre a saída de Clara Sottomayor daquele órgão, nomeadamente se é verdade que ameaçou a magistrada com um processo disciplinar e, caso afirmativo, com que fundamento; se um dos motivos da discordância quanto à fundamentação do projeto de acórdão da relatora teve a ver, como tem sido repetido, com base em "fontes judiciais" que remetem para o tribunal a que preside, com a existência, no texto, a menção ou menções a violência doméstica; como reage ao facto de ser imputada ao TC, no citado texto de opinião de Bacelar Gouveia, a violação do princípio constitucional da independência dos juízes, e se não considera que perante uma suspeita/acusação tão grave o TC e o seu presidente têm o dever de esclarecer publicamente e de viva voz o que sucedeu. Até ao início da noite desta terça-feira o presidente do TC não tinha respondido nem atendido as chamadas do DN.

* A ferro e fogo. Honra pessoal é indepedência de carácter.

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