da vida do meu filho e
eu não sei lidar com isso
Foi preciso tocar a um filho meu para começar a entender o fenómeno e a ver como ele consegue modificar quase a 100 por cento uma criança.
Há anos que ando a ouvir a minha geração, ali nos 40 e poucos, a
falar, com algum desdém, de bullying nas escolas. “Isso não é novidade
nenhuma. No nosso tempo já existia só que não se chamava era assim”. É
normalmente esta a ideia de todos, amigos, conhecidos, família, e era
também a minha, porque quando era puto também levei uns calduços dos
rufias da escola, também me deram alcunhas parvas e insultuosas, também
fui muitas vezes gozado por tudo e mais alguma coisa.
Hoje,
à distância de 30 anos, tenho a tendência para ver tudo isso como
coisas normais da adolescência, porque são episódios difusos lá no
passado, vividos numa conjuntura diferente, numa envolvente social muito
distante daquela que tenho hoje, e, sobretudo, porque são história que
se passaram comigo, e não com os meus filhos. E só percebi essa
diferença hoje, agora, quando um dos meus é a vítima, é o envolvido
nisto que antigamente não tinha nome e a que hoje se chama bullying. E
foi preciso tocar a sério a um filho meu para eu começar a entender
melhor este fenómeno e a ver como ele consegue modificar quase a 100 por
cento uma criança, como consegue destruir processos educativos
que os pais colocam em prática durante anos, como consegue ser mais
forte do que conversas, exemplos práticos, metodologias estudadas por
psicólogos. O bullying leva tudo à frente, e eu, como pai, não sei lidar
com isso.
O princípio de tudo
Foi ainda antes de o meu filho mais velho entrar para o primeiro
ciclo, num colégio privado, que se começaram a manifestar na envolvente
escolar em que estava inserido os primeiros episódios de coação, então
mais verbal do que física. Ao contrário dos outros rapazes, ele não
escolheu ir para o futebol ou para o karaté, preferiu o ballet. Teve
todo o apoio dos pais. Tinha 4 ou 5 anos, e, na inocência da idade, não
estava preparado para lidar com o preconceito de uma escolha que fez
baseada naquilo que lhe apetecia mais. A turma era constituída
unicamente por meninas, e ele era o único rapaz. Não foram precisas
muitas semanas para chegar a casa a queixar-se de que vários meninos da
escola gozavam com ele por andar no ballet. Logo aqui começam as minhas
dúvidas.
De que forma é que uma escola combate este tipo
de preconceito, esta coação verbal, a humilhação a que crianças de 4 ou 5
anos começam a ser sujeitas?
Era bastante fácil
identificar os agressores, porque a escola era pequena, todos se
conheciam pelos nomes, a vigilância sobre os alunos era constante e as
crianças daquelas idades ainda não percebem o conceito de delação, não
temem vinganças pelo facto de denunciarem quem os magoa, física ou
verbalmente. Na altura, reportei o episódio aos responsáveis da escola,
que me garantiram que iriam tomar medidas para que essas situações não
voltassem a acontecer. Mas voltaram a acontecer. Muitas vezes.
Naturalmente que ao fim de poucos meses, o meu filho me pediu para sair
do ballet e ir para o judo, porque não queria continuar a ser gozado
pelos colegas por ser o único menino no ballet. E agora outra dúvida que
nunca consegui esclarecer:
Não é papel de uma instituição
de ensino ajudar na construção da personalidade dos alunos, formando-os
também como pessoas, com princípios cívicos básicos?
Muita
gente defende que esse papel cabe aos pais, à família, à envolvente
social extra escola, mas eu não consigo concordar com isso. Esse papel
cabe a toda a gente, à sociedade em geral, a todos os que estejam a
lidar diretamente com os envolvidos num caso de injustiça, seja ela qual
for. Se uma criança vive uma situação como a que o meu filho estava a
viver na escola, não seria obrigação dos responsáveis da escola, numa
primeira fase, falarem com os agressores e explicarem-lhes, de forma
didática e cívica, aquilo que estavam a fazer de errado?
Não
deveria ser papel da escola, referenciar os agressores e estar atenta
para a eventual repetição desses mesmos comportamentos?
Uma
criança não aprende com uma conversa, aprende também pela repetição,
pelo exemplo. Logo, o normal, digo eu, seria que alunos com
comportamentos agressivos perante os outros devessem ser identificados e
acompanhados mais de perto, por forma a que por um lado se protejam os
agredidos, mas por outro se forme a personalidade dos agressores, e se
consiga transformá-los em crianças mais conscientes. E este papel não
cabe unicamente à escola, como é evidente. Cabe sobretudo aos pais, à
família. E é por isso que eles têm de ser envolvidos em todo este
processo. Na escola, onde muitas crianças passam grande parte dos dias,
rodeadas de outras crianças, é mais fácil identificar este tipo de
comportamentos, até porque quando os miúdos não estão com os pais tendem
a comportar-se de forma diferente. Logo, o normal será estas situações
serem reportadas aos pais, para que eles, em conjunto com a escola,
possam contribuir para tornar aquela criança numa melhor criança, num
melhor adolescente, num melhor adulto. Ninguém é bully só porque
sim, ou a vida toda, todos os casos são reversíveis, com o devido
acompanhamento e com as ações certas.
Se senti pela primeira vez o bullying na vida do meu filho neste
episódio do ballet, voltei a perceber situações do género várias outras
vezes no ano seguinte. E pelas mais variadas razões. Bullying verbal,
mas também físico. E nunca entendi como é que num colégio
privado minúsculo, que não deveria ter mais de 25 crianças em simultâneo
no recreio, o meu filho era constantemente agredido, insultado, e estas
situações não tinham um fim, e os agressores recorrentes nunca
tinham acompanhamento ou punição. Optei por aquilo que se calhar muitos
pais fariam: mudei o meu filho de escola.
No terceiro ano, com 7
anos, passou para uma instituição público-privada, bastante maior, menos
controlada, mas que me parecia ter as condições para ele poder ter uma
escolaridade tranquila. As coisas não foram muito diferentes: mais
queixas, mais agressões, mais episódios de violência, de humilhação,
sendo que, tal como na escola anterior, os agressores, perfeitamente
identificados, nunca foram alvo de acompanhamento especial, de uma
formação cívica para que entendessem a consequência dos seus atos de
violência. Também nunca consegui que a escola me pusesse em contacto com
os pais dos miúdos que, de forma persistente, infernizavam a vida ao
meu filho, porque “isso não é fácil”, como me diziam, ou “as coisas não
funcionam assim”. O que é certo é que nada se resolveu.
Estou
longe de ser aquele tipo de pai que acha sempre que o filho é uma
vítima, ou que o trata como um coitadinho porque leva pancada na escola.
Pelo contrário. Perante o meu filho, sou até bastante
descontraído com o tema, e tento fazer-lhe ver que estas situações são
comuns em todas as escolas, e que ele não pode nunca deixar de relatar
estes episódios, mesmo que lhe digam que é “um queixinhas”. Não é. É
isso que é correto fazer. Também não sou o pai que diz que se leva tem
de responder. Nunca. Digo-lhe o contrário disso. Que nenhum
comportamento incorreto justifica outro comportamento incorreto, que
jamais deve responder da mesma forma, porque isso não resolve qualquer
problema, que não é a maneira mais inteligente de lidar com a situação.
Ao
longo desses dois anos na nova escola, e perante repetidos episódios de
bullying, fui tendo dezenas de conversas com o meu filho, tentando
mostrar-lhe como agir perante essas situações, explicando-lhe que ele
não deve valorizar demais isso, e que o importante é que ele se comporte
de forma correta, digna, que estude, que seja educado com os
professores e com os colegas, porque esse caminho é que o vai levar a
ser um jovem melhor e um adulto melhor.
Terminado o quarto ano, e também porque sentia que a escola onde ele
estava não correspondia às minhas expetativas, optei por matriculá-lo
numa escola pública, com alunos do quinto ao 12.º ano. E aqui voltei à
minha experiência pessoal para suportar parte da minha decisão. Desde
que entrei para a escola, aos 6 anos, até que saí, no quarto ano da
faculdade, que frequentei o ensino público. Os meus pais foram, ao longo
de toda a vida, professores do ensino público. Tive boas e más
experiências, não tenho termo de comparação para saber se é melhor ou
pior do que o privado, mas seguramente terá vantagens e desvantagens. Achei que seria importante o meu filho experienciar a vivência de uma escola pública, visto que tinha andado sempre em colégios.
Na minha ideia, isso dar-lhe-ia mais mundo, envolvê-lo-ia com todo o
tipo de crianças e personalidades, boas e más, gente com mais e menos
dinheiro, com histórias de vida mais pesadas e absolutamente normais.
Defendo sempre que a diversidade nos enriquece, e sabia que numa escola
pública daquela dimensão ele iria conhecer e conviver com muitos miúdos
diferentes, e criar os seus laços.
Se no primeiro ano correu tudo
com alguma tranquilidade e normalidade, a partir do sexto ano, quando
ele tinha 10 anos, voltei a ouvir episódios de agressões, empurrões,
murros, humilhações. Fui tentando desvalorizar, até porque apesar de
tudo não via grandes alterações no aproveitamento escolar, nem na
relação do meu filho com os professores, até começar a sentir que as
coisas lentamente estavam a mudar. E foi só aí, provavelmente já
um pouco tarde, que comecei a dedicar mais atenção ao bullying, à forma
como estes episódios começavam a moldar, de forma até bastante
acelerada, a personalidade do meu filho.
Nos últimos dois
anos, quando ele andou entre os 10 e os 12 anos, o meu filho foi-se
transformando. Não atribuo a mudança unicamente ao bullying, mas também à
fase da pré-adolescência, mas o que comecei a sentir foi que ele tinha
duas vidas, duas formas de estar diferentes, uma na escola e outra em
casa. O miúdo doce e ternurento que tinha, e tenho, junto a mim não é a
criança que os professores descrevem, uma criança irrequieta nas aulas,
com comportamentos perturbadores para ele e para os outros, que
desestabiliza, que não se consegue concentrar, que não acata ordens, que
provoca. Como já referi, não sou, de todo, o pai que vitimiza o
filho e que acha que o seu menino é um anjo e que os professores e
colegas são uns patifes que só estão ali para o prejudicar.
Gosto de entender todas as razões, de ouvir todas as partes, de entender
as motivações. E, por isso, ao longo destes dois anos, tenho
regularmente conversado de forma aberta, franca, direta com ele sobre
cada um dos episódios que se vão passando na escola, dentro e fora da
sala de aulas. Procurei, também, a ajuda de uma profissional, uma
psicóloga infantil, para me ajudar, e para ajudar o meu filho na adoção
dos comportamentos mais corretos, para que ele entenda o que se está a
passar e saiba gerir estas situações sem o perturbar, sem o marcar para a
vida.
Não há praticamente semana em que não veja o meu filho envolvido em episódios de violência e humilhação. Já
foi parar ao hospital a sangrar do nariz de um murro que levou, já foi
pontapeado por vários miúdos numa roda em ele estava no chão, no meio, a
ser humilhado por todos, já lhe roubaram a mochila e deixaram-na dentro
de uma sanita, já lhe roubaram o sapato e o obrigaram a andar descalço
pela escola a ser gozado por toda a gente, já levou murros, calduços a
toda a hora, é humilhado regularmente pelos mais velhos, é alvo de
chacota nos grupos de WhatsApp da turma, e eu próprio já me
encontrei com a diretora de turma para tentar entender tudo isto e
perceber o que é que a escola faz em situações como esta. Uma vez mais, a
resposta é a de sempre: não há muito que uma escola possa fazer. E mais
uma pergunta minha:
Mas como é que não há muito que uma escola possa fazer perante um problema social e escolar tão grave como este?
Se
não existem meios, criem-se meios. Investir em Educação não é só
contratar mais professores, é ajudar a que as escolas tenham os meios
adequados para nos ajudarem a todos, sociedade, a criarmos melhores
pessoas. Não há pai que não queira que o seu filho seja uma melhor
pessoa, e que aceite o contributo de profissionais para que ele receba a
melhor formação escolar e humana possível.
Como é possível que
nas escolas não exista monitorização destas situações? Que não sejam
sinalizadas as crianças com comportamentos agressivos recorrentes? Que
não lhes seja atribuído um acompanhamento especial para as tornar em
melhores pessoas, em crianças mais conscientes?
Como é possível
que as vítimas tradicionais, os miúdos mais frágeis, muitas vezes bons
alunos, ou com características físicas que as tornam apetecíveis aos
bullys (os gordinhos, os baixinhos, os que usam óculos, os muito magros e
altos, os mais tímidos) não sejam de alguma forma protegidos, ou
devidamente informados sobre o que fazer em situações em que são alvos
de bullying?
O sentimento do meu filho é o pior possível, aquele
de que não adianta dizer nada, não adianta apresentar queixa, porque
nada se vai resolver. É a mesma sensação que nos faz descrer da Justiça.
Se não acreditamos na Justiça, não temos uma sociedade justa, se os
miúdos não acreditam na punição dos erros, no castigo de quem se
comporta de forma inadequada, também eles desistam e resignam-se à sua
condição de vítimas impotentes. E é imperativo que isto termine e que
isto se altere.
Uma última pergunta:
Qual é o nosso papel enquanto pais que lidam com o bullying de forma real?
É
um papel absolutamente decisivo, mas para isso é fundamental que
estejamos atentos e conscientes do que está a acontecer com os nossos
filhos. Esta semana, perante mais um episódio de bullying de que o meu
filho foi vítima, tentei uma vez mais entender a envolvente e o
contexto. A história começava com ele, o meu filho, a ir dar “um
calduço”, como ele me disse, a outra criança. Não quis ouvir mais.
Automaticamente percebi que o pior que poderia acontecer tinha
acontecido. O agredido está a tornar-se no agressor. Aquilo que o meu
filho viveu durante anos no papel de vítima está, agora, a manifestar-se
no sentido oposto, com ele a fazer aos outros aquilo que lhe fizeram a
ele. E isso é o pior que pode acontecer, é o sentimento máximo
de falhanço para um pai, pelo menos para mim, após anos a viver com um
lado do problema e agora, de repente, a ter de viver o outro lado desse
mesmo problema. O que é que transformou o meu filho? O que é que fez
daquele miúdo que passa a vida a pedir beijos e abraços em casa, que não
passa um dia sem dizer que me ama, que está sempre com saudades dos
irmãos, que toda a gente elogia e admira, numa criança que, do nada, vai
dar um calduço a outro miúdo, só porque sim?
Honestamente, penso
que sou um pai informado, com acesso a pessoas competentes e
profissionais que atuam na área da psicologia infantil, procuro entender
de forma racional todas as vertentes deste problema, procuro sempre
agir com ponderação, dialogar ao máximo com o meu filho sobre tudo o que
se passa com ele, mas sinto que sem o apoio das instituições de
ensino onde eles estão inseridos jamais os pais conseguirão resolver
estes problemas, ajudar os seus filhos, e combater ao máximo o bullying. Imagino o que acontece com pais menos informados, menos interessados, com menos oportunidades.
Quando
é que este fenómeno será encarado como uma prioridade educativa? Quando
começarmos a ter as clínicas cheias de jovens adolescentes a serem
acompanhados com problemas ligados à depressão?
Quando mais uns
quantos se cortarem a sério, não porque o viram num vídeo do YouTube,
mas porque não suportam mais viver numa constante humilhação e num clima
de agressões constantes? Quando percebermos que estamos a formar jovens
desinteressados, desinteressantes, sem interesses pela vida, porque o
período escolar, que deveria ser de descoberta e aprendizagem, foi só
uma época sombria que eles querem esquecer? Que pessoas são essas que
iremos formar? Não sei, mas não são essas pessoas que vão tornar a nossa
sociedade melhor.
IN "MAGG"
30/05/19
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