.
IN "OBSERVADOR"
29/05/19
.
Cuidados Paliativos:
ouça o alerta de tsunami,
ajude a mudar o futuro
Uma sociedade será moderna e avançada quanto melhor cuidar dos
seus elementos mais frágeis e em sofrimento. Só existe sofrimento
intolerável se as pessoas não forem cuidadas e devidamente tratadas.
Foi divulgado há dias um estudo científico sobre o padrão de doenças que nos afectarão no futuro – “The
escalating global burden of serious health-related suffering:
projections to 2060 by world regions, age groups, and health conditions”, – realizado por uma reputada equipa internacional, que integra duas investigadoras do nosso país.
O dito estudo tem como objetivo projetar a nível global e até 2060,
por regiões do mundo, grupos etários e condições de saúde, a carga de
sofrimento grave relacionado com problemas de saúde que possam ser
crónicos e irreversíveis e, por isso mesmo, requererem cuidados de saúde
a eles dirigidos, os cuidados paliativos. O que se fez foi combinar
projeções de mortalidade da OMS (2016-2060) com estimativas de
prevalência de sintomas físicos e psicológicos em 20 condições de saúde.
Concluiu-se que a carga de sofrimento grave relacionado com problemas
de saúde irá quase duplicar até 2060, com subidas mais rápidas em países
com baixo rendimento, entre idosos e em pessoas com demência. Falamos
de mais de 45 milhões de pessoas em todo o planeta com patologias como o
cancro, a demência, o AVC ou as insuficiências de orgão.
Esta é a
primeira projeção mundial devidamente estruturada conhecida sobre a
carga de sofrimento que é elegível para prestação de cuidados
paliativos. Traça um quadro muito preocupante sobre o futuro dos
cidadãos e dos cuidados de saúde em diversas regiões, incluindo
Portugal, com um aumento exponencial da carga de doença crónica, da
morbimortalidade e das necessidades paliativas das populações.
Sem
entrar em detalhes científicos mais minuciosos, vale a pena aqui
sumariamente revisitar, pela sua relevância e implicações, os principais
resultados e os alertas associados, e fazer a propósito algumas
reflexões, com propostas imprescindíveis de mudança para o futuro.
Este
estudo aponta para a necessidade imediata de um plano de acção
consertada e consistente, que promova a integração efectiva dos cuidados
paliativos nos sistemas de saúde, como um direito, como imperativo
humanista, científico, ético e económico e como forma de não deixar em
sofrimento evitável milhões de pessoas. Os dados publicados são
claramente um sinal de alerta sobre um futuro próximo que, se entretanto
nada fizermos, se antevê problemático e doloroso. Estamos, no entanto,
muito a tempo de tomar medidas e de inverter essa fatalidade.
Enquanto
colectivo que somos, e atendendo aos diferentes níveis de
responsabilidade que cada um nele possa ter, estes dados exigem de todos
acção imediata mas também projectada para os próximos tempos. Não
poderemos fazer como a avestruz, nem esperar que, a cobro de medos
atávicos em torno da discussão da inevitabilidade da nossa finitude, “a
coisa não seja bem assim”, ou fazer de conta que não vimos os alertas.
Desde
logo, os alertas do aumento do sofrimento associado a doenças exigem
dos responsáveis executivos uma resposta inequívoca de investimento
público em cuidados em fim de vida, reiteradamente negligenciada nos
últimos tempos, e particularmente nos orçamentos anuais para a saúde.
Exigem visão e coragem, exigem planeamento e alocação de recursos
humanos específicos, devidamente preparados e em número adequado. A
magnitude do problema e do desafio que temos pela frente reforça a
necessidade de integração entre sector público, social, e privado, e a
premência de oferecer um apoio consistente ao cuidador informal.
Exige-se
claramente uma especial prioridade ao reforço de respostas na
comunidade, vindas quer dos cuidados de saúde primários, quer dos
cuidados hospitalares, da saúde e de apoio social, com particular
enfoque para a inevitável coordenação e integração dos vários níveis de
cuidados e das múltiplas soluções envolvidas.
Exige-se uma mudança
de paradigma nas respostas hospitalares oferecidas aos doentes crónicos
com pluripatologia, insistindo nós na premência de se fazerem
avaliações e abordagens globais, com intervenções clínicas
proporcionadas, em oposição a uma abordagem ainda tão frequente,
centrada no modelo de ataque à doença aguda e altamente interventiva.
Exige-se
uma gestão dos cuidados de saúde com base no valor gerado pelas
intervenções, seja para os doentes, seja para as instituições e para o
próprio sistema. E com essas premissas, teremos certamente cuidados de
saúde mais humanizados e mais eficientes, em que os doentes são tratados
de acordo com as suas necessidades e com custos reduzidos face ao
padrão actual.
Exige-se formação específica, rigorosa e distinta
para todos os profissionais de saúde, no âmbito das doenças crónicas, da
geriatria e dos cuidados paliativos, formação centrada na pessoa doente
e não nas doenças, formação que capacite para o tratamento, o cuidar e a
prioridade ao conforto.
E é também à própria sociedade,
conhecedora de toda esta informação e com base na nossa responsabilidade
social e numa visão realista do futuro, que se pede que venha a exigir a
mudança atempada aos decisores e as medidas descritas, tendentes ao
incremento das respostas de cuidados paliativos.
Tem-se falado
muito da consciência ecológica, o que é bom, mas será imprescindível
lembrar que ela começa na forma como tratamos do próprio Homem, da forma
como garantimos um futuro melhor para todos, nomeadamente para os mais
vulneráveis. Uma sociedade será moderna e avançada quanto melhor cuidar
dos seus elementos mais frágeis e em sofrimento, quanto melhor respeitar
a Dignidade de cada ser humano e a inviolabilidade da sua vida,
independentemente da sua condição. Dissémo-lo há um ano atrás quando
fizemos o debate sobre a eutanásia, dissémo-lo quando propusemos e
aprovámos a lei de bases dos cuidados paliativos, a lei do testamento
vital, a lei dos direitos das pessoas doentes e em fim de vida (Lei
31/2018), e vamos continuar a sublinhar que a resposta para os que estão
doentes e em fim de vida passa pelo acesso alargado e em tempo os
cuidados paliativos. Só existe sofrimento intolerável se as pessoas não
forem cuidadas e devidamente tratadas.
Fica o alerta deste verdadeiro tsunami
para a saúde e para a sociedade, ficam propostas concretas para o
evitar e resolver. Saibamos todos avançar com coragem e visão, promover
mais e melhores cuidados paliativos, e exigir aos decisores e
responsáveis políticos uma resposta cabal e efectiva. Faremos
seguramente a Diferença.
Médica de Cuidados Paliativos; Deputada CDS-PP
IN "OBSERVADOR"
29/05/19
.
Sem comentários:
Enviar um comentário