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A natureza do PAN
“Dono de dois gatos e um coelho, quer pôr as alterações
climáticas no centro do debate.” Que significa isto? Que se fosse dono
de duas osgas e um periquito o Francisco daria atenção ao Médio Oriente?
Até Domingo passado, eu nunca prestara atenção ao PAN,
que tomei por um epifenómeno idêntico àquele sr. Sérgio dos reformados e
às pulseiras do António Sala. Pelos vistos, 5,1% dos eleitores
prestaram a atenção suficiente para votar no partido das Pessoas, dos
Animais e da Natureza (na verdade, descontados os votos nulos, os votos
em branco e a abstenção, nem sequer 1,3% das pessoas – dos animais e da
natureza não sei – escolheram o PAN, do mesmo modo que a “grande
vitória” do PS se deveu a 8,2% do eleitorado, a “direita” do costume
rondou os 7% e o imparável BE parou nos 2,4%, mas esse é outro assunto).
Sempre ávido de participar nas últimas tendências, comprei um pólo
verde acinzentado e li detalhados artigos sobre o eurodeputado do PAN e
sobre o PAN. O eurodeputado chama-se (um momento, que estou a procurar o
nome… Andava algures… Cá está!) Francisco Guerreiro, é vegan e tem dois
gatos e um coelho. Aliás, “O eurodeputado vegan tem dois gatos e um
coelho” é exactamente o título do artigo que o “Expresso” dedica ao
rapaz. Não é um título particularmente informativo, a menos que
consideremos informativos os títulos “O vereador sportinguista tem uma
espondilose e quatro sobrinhos”, ou “O anestesista marreco tem um
‘time-sharing’ e o bacalhau de molho”. Enfim, jornalismo moderno.
E
a modernidade jornalística prossegue quando se tenta explicar o impacto
da fauna (a propósito, é coerente que um defensor dos animais e da
natureza detenha a propriedade de bichos – e de arbustos, já agora?) do
Francisco nas respectivas convicções: “Dono de dois gatos e um coelho,
quer pôr as alterações climáticas no centro do debate.” O que significa
isto? Que se fosse dono de cinco percevejos e três rinocerontes, as
aflições do Francisco divergiriam para o conflito no Médio Oriente? E
que se mantivesse em cativeiro duas osgas e um periquito o Francisco
perderia o sono a pensar no drama da Huawei?
O retrato do
Francisco não termina aqui. O Francisco é coerente. O Francisco tem um
carro que só usa “quando não tem alternativa”, leia-se para “ir buscar a
filha à escola” ou “calcorrear o país”, leia-se sempre que lhe dá
jeito, leia-se à semelhança de toda a gente: eu também dispenso o carro
para atravessar a rua – sou ambientalista e não sabia. O Francisco, que
“tentará pagar um extra para compensar a pegada ecológica”, viajará de
avião de e para Bruxelas “quase todas as semanas”, leia-se porque deixa
cá a família para, cito, não a prejudicar, leia-se agirá de acordo com
as suas conveniências, leia-se à semelhança de toda a gente: excepto os
bandalhos que não “tentam” pagar “um extra” para “compensar” a “pegada
ecológica”. O Francisco procura comprar roupa “apenas quando precisa”,
“e geralmente em segunda mão”. O Francisco “recolhe lixo nos tempos
livres”. O Francisco é uma jóia de moço, ou no mínimo convenceu-se
disso. E esse é o problema.
Não há mal nenhum em que o Francisco
se vista com roupa usada, apanhe lixo, coma relva, acarinhe chinchilas,
utilize hipocritamente os transportes poluentes e, se assim o entender,
saia à varanda em cuecas (herdadas do avô) para acumular água da chuva
em tigelinhas recicláveis. O mal é o Francisco julgar que o seu
comportamento é tão espectacular que constitui um exemplo a seguir pela
humanidade em peso. Antes do PAN, o dilúvio. Depois do PAN, um cartaz da
campanha traduz a modéstia do candidato e da candidatura: “Vamos sentar
o planeta no Parlamento Europeu”. Do alto dos inúmeros delírios, o
Francisco imagina mesmo que representa a Terra e não 168 mil alminhas.
E
quem diz o Francisco diz o PAN em geral, cujas crenças, no sentido
religioso do termo, não mereceriam comentário se assumidamente se
limitassem aos membros e simpatizantes da seita. Sucede que não limitam.
O PAN é livre de abominar os transgénicos e os respectivos benefícios. O
PAN é livre de presumir que as “medicinas alternativas” são uma coisa
autêntica e não uma impostura do gabarito da tarologia. O PAN é livre de
preferir curar a enxaqueca com camomila no lugar de Zomig. O PAN é
livre de trocar proteínas animais por alcachofras e tofu. O PAN é livre
de não apreciar sacos de plástico e carregar as compras na cabeça. O PAN
é livre de sentir cócegas com os combustíveis fósseis. O PAN é livre de
acreditar nos méritos, e na viabilidade, de providenciar um salário aos
que recusam trabalhar. O PAN é livre de ponderar a saída do euro. O PAN
é livre de sonhar com o indicador da Felicidade Interna Bruta. O PAN é
livre de, sob o verniz “urbano” e fofinho, ser bruto como as casas.
A
chatice, e o perigo, é que o PAN não se satisfaz em passear ignorância
sem um remoto vínculo à realidade. O PAN, que é para a ciência (e para a
economia) o que o BE é para a economia (e para a ciência) quer, e aos
poucos tem ajudado a conseguir, que a ignorância, a crendice e a
superstição cheguem à lei. O PAN devia ser livre de tudo, não devia ser
livre de interferir na liberdade alheia através de alucinações. A última
palavra ao Francisco: “O nosso caderno de encargos é muito exigente”.
De facto, exige uma imensa propensão para o atraso de vida.
IN "OBSERVADOR"
01/06/19
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