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É possível combater o racismo com
IN "PÚBLICO"
29/04/19
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É possível combater o racismo com
a classificação racial dos cidadãos?
É totalmente desaconselhável a introdução de estatísticas públicas raciais na próxima operação censitária.
1. Há, em Portugal, problemas sérios de racismo.
Não porque vivamos num país com ordenamento jurídico e político
segregacionista (não vivemos), mas porque existem práticas e discursos
racistas sistemáticos. E porque existe, também, uma racialização,
historicamente construída, da desigualdade social, o que facilita e
naturaliza o preconceito. Precisamos, pois, de conhecer melhor o racismo
existente, produzindo informação útil para sustentar políticas públicas
de igualdade mais eficazes. Foi neste contexto que surgiu,
recentemente, a proposta de introduzir, no próximo Recenseamento Geral
da População, perguntas que permitam uma classificação racial de todos os portugueses. Esta solução é, em minha opinião, inadequada e contribui para reforçar o fenómeno que se pretende contrariar: o racismo.
2. De facto, não é possível combater o racismo e, em
simultâneo, institucionalizar a classificação racial, pelo Estado, de
todos e cada um dos cidadãos. Quando o Estado introduz categorias
raciais nas estatísticas oficiais contribui para legitimar e naturalizar
essas mesmas categorias. Ora, o fundamento do racismo não é o
tratamento desigual das “raças”, mas a ideia de que as pessoas são
socialmente diferentes por terem diferentes características fenotípicas,
biológicas. A categoria “raça” pressupõe, nomeadamente, que diferenças
na cor de pele correspondem a diferenças culturais. Por isso, o uso
institucionalizado da categoria “raça” reforça os fundamentos cognitivos
do racismo. Não é possível combater o racismo e salvar a categoria
“raça”. Institucionalizar uma classificação racial para acabar com o
racismo é querer atingir um objetivo fazendo, para tal, o exato oposto
do que se pretende obter. O combate ao racismo, como, em regra, a todas
as discriminações, requer a afirmação da semelhança essencial de todos
os seres humanos, não a enfatização de uma das suas múltiplas
diferenças.
3. O argumento fundamental dos defensores das estatísticas raciais
é simples: estas fariam falta para se conhecer melhor o racismo. O que
será em parte verdade mas é insuficiente como argumento. A ideia de que
um ato pode ser plenamente justificado pela sua utilidade é o princípio
da amoralidade. Estatísticas raciais têm, como quase todas as práticas
sociais, vantagens e desvantagens que devem ser ponderadas. Nessa
ponderação, o estatuto do autor da produção dos dados é relevante. Os
efeitos de legitimação da categorização racial não são os mesmos quando o
autor das estatísticas é o Estado ou quando é, por exemplo, uma equipa
de investigação. Como também não são idênticos os efeitos que resultam
da utilização daquelas categorias em inquéritos por amostragem a uma
pequena parte da população e os que resultam do seu uso universal e
sistemático em operações censitárias ou em registos administrativos que
abrangem, regularmente, a totalidade ou a maioria dos cidadãos. A não
inclusão de questões conducentes à classificação racial nos censos não
implica, pois, a ausência de informação útil para a avaliação da
discriminação racial. Esta pode ser obtida por meios alternativos, em
especial através de estudos e inquéritos por amostragem com fins
científicos ou técnicos, casos em que as vantagens suplantam as
desvantagens.
4. Em vez de racializar o Censo seria preferível
criar um observatório público do racismo e da xenofobia. Entretanto,
muito pode ser feito com o que já se sabe. Por exemplo, não precisamos
de estatísticas raciais para enfrentar os problemas da segregação racial
em termos territoriais, por definição de grande visibilidade. Como
também não precisamos de estatísticas raciais para colocar em prática
processos de discriminação positiva que corrijam a falta de diversidade
da representação política ou da participação no espaço mediático.
5. Na tomada de decisão sobre a melhor forma de
obter informação útil para combater o racismo seria ainda importante
avaliar que resultados tiveram medidas semelhantes às agora propostas
nos poucos países em que foram concretizadas: no caso da Europa, apenas
no Reino Unido e na Irlanda. Que eu saiba, não existe qualquer prova de
que, nesses países, a produção de estatísticas raciais tenha contribuído
para conter ou diminuir o racismo. Sabe-se, isso sim, que facilitaram a
adoção de políticas de identidade racializadas. Há quem entenda que
este é o melhor caminho no combate ao racismo. Não partilho a opinião. O
combate ao racismo ganha em ser colocado no campo das políticas de
igualdade, mais do que no das políticas de identidade. As primeiras
permitem afirmar princípios universalistas de organização das sociedades
na base dos quais tem sido possível reduzir progressivamente
discriminações com uma longa história. As segundas celebram os
particularismos, afirmam, em regra, o predomínio das heranças coletivas
sobre as escolhas individuais, fragmentam as pertenças sociais, conduzem
a uma erosão do sentido de pertença comum à coletividade política e
promovem uma perceção tribal da diversidade. Ou seja, criam terreno
fértil para a explosão de todas as formas de discriminação em torno das
diferenças cuja irredutibilidade promovem.
6. No
contexto atual de crescimento dos populismos nacionalistas, em
particular na Europa, a relação entre racismo e políticas de identidade
envolve não apenas desvantagens mas riscos. O contexto mudou e, hoje, o
uso identitário de estatísticas raciais, que se fará assim que essas
estatísticas estiverem disponíveis, independentemente da vontade e
intenções dos seus produtores, facilitará menos a emergência de
políticas de reconhecimento de minorias do que de políticas de afirmação
nacionalista da maioria. Na Europa, isso significará o reforço de
perceções racistas afirmando a superioridade branca, que se alimentarão
de uma apropriação preconceituosa e discriminatória de eventuais
estatísticas raciais.
7. Considerando os efeitos perversos e riscos que
resultam de estatísticas públicas raciais, é totalmente desaconselhável a
sua introdução na próxima operação censitária.
IN "PÚBLICO"
29/04/19
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