01/05/2019

RUI PENA PIRES

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É possível combater o racismo com 
a classificação racial dos cidadãos?

É totalmente desaconselhável a introdução de estatísticas públicas raciais na próxima operação censitária.

1. Há, em Portugal, problemas sérios de racismo. Não porque vivamos num país com ordenamento jurídico e político segregacionista (não vivemos), mas porque existem práticas e discursos racistas sistemáticos. E porque existe, também, uma racialização, historicamente construída, da desigualdade social, o que facilita e naturaliza o preconceito. Precisamos, pois, de conhecer melhor o racismo existente, produzindo informação útil para sustentar políticas públicas de igualdade mais eficazes. Foi neste contexto que surgiu, recentemente, a proposta de introduzir, no próximo Recenseamento Geral da População, perguntas que permitam uma classificação racial de todos os portugueses. Esta solução é, em minha opinião, inadequada e contribui para reforçar o fenómeno que se pretende contrariar: o racismo.

2. De facto, não é possível combater o racismo e, em simultâneo, institucionalizar a classificação racial, pelo Estado, de todos e cada um dos cidadãos. Quando o Estado introduz categorias raciais nas estatísticas oficiais contribui para legitimar e naturalizar essas mesmas categorias. Ora, o fundamento do racismo não é o tratamento desigual das “raças”, mas a ideia de que as pessoas são socialmente diferentes por terem diferentes características fenotípicas, biológicas. A categoria “raça” pressupõe, nomeadamente, que diferenças na cor de pele correspondem a diferenças culturais. Por isso, o uso institucionalizado da categoria “raça” reforça os fundamentos cognitivos do racismo. Não é possível combater o racismo e salvar a categoria “raça”. Institucionalizar uma classificação racial para acabar com o racismo é querer atingir um objetivo fazendo, para tal, o exato oposto do que se pretende obter. O combate ao racismo, como, em regra, a todas as discriminações, requer a afirmação da semelhança essencial de todos os seres humanos, não a enfatização de uma das suas múltiplas diferenças.

3. O argumento fundamental dos defensores das estatísticas raciais é simples: estas fariam falta para se conhecer melhor o racismo. O que será em parte verdade mas é insuficiente como argumento. A ideia de que um ato pode ser plenamente justificado pela sua utilidade é o princípio da amoralidade. Estatísticas raciais têm, como quase todas as práticas sociais, vantagens e desvantagens que devem ser ponderadas. Nessa ponderação, o estatuto do autor da produção dos dados é relevante. Os efeitos de legitimação da categorização racial não são os mesmos quando o autor das estatísticas é o Estado ou quando é, por exemplo, uma equipa de investigação. Como também não são idênticos os efeitos que resultam da utilização daquelas categorias em inquéritos por amostragem a uma pequena parte da população e os que resultam do seu uso universal e sistemático em operações censitárias ou em registos administrativos que abrangem, regularmente, a totalidade ou a maioria dos cidadãos. A não inclusão de questões conducentes à classificação racial nos censos não implica, pois, a ausência de informação útil para a avaliação da discriminação racial. Esta pode ser obtida por meios alternativos, em especial através de estudos e inquéritos por amostragem com fins científicos ou técnicos, casos em que as vantagens suplantam as desvantagens.

4. Em vez de racializar o Censo seria preferível criar um observatório público do racismo e da xenofobia. Entretanto, muito pode ser feito com o que já se sabe. Por exemplo, não precisamos de estatísticas raciais para enfrentar os problemas da segregação racial em termos territoriais, por definição de grande visibilidade. Como também não precisamos de estatísticas raciais para colocar em prática processos de discriminação positiva que corrijam a falta de diversidade da representação política ou da participação no espaço mediático.

5. Na tomada de decisão sobre a melhor forma de obter informação útil para combater o racismo seria ainda importante avaliar que resultados tiveram medidas semelhantes às agora propostas nos poucos países em que foram concretizadas: no caso da Europa, apenas no Reino Unido e na Irlanda. Que eu saiba, não existe qualquer prova de que, nesses países, a produção de estatísticas raciais tenha contribuído para conter ou diminuir o racismo. Sabe-se, isso sim, que facilitaram a adoção de políticas de identidade racializadas. Há quem entenda que este é o melhor caminho no combate ao racismo. Não partilho a opinião. O combate ao racismo ganha em ser colocado no campo das políticas de igualdade, mais do que no das políticas de identidade. As primeiras permitem afirmar princípios universalistas de organização das sociedades na base dos quais tem sido possível reduzir progressivamente discriminações com uma longa história. As segundas celebram os particularismos, afirmam, em regra, o predomínio das heranças coletivas sobre as escolhas individuais, fragmentam as pertenças sociais, conduzem a uma erosão do sentido de pertença comum à coletividade política e promovem uma perceção tribal da diversidade. Ou seja, criam terreno fértil para a explosão de todas as formas de discriminação em torno das diferenças cuja irredutibilidade promovem.

6. No contexto atual de crescimento dos populismos nacionalistas, em particular na Europa, a relação entre racismo e políticas de identidade envolve não apenas desvantagens mas riscos. O contexto mudou e, hoje, o uso identitário de estatísticas raciais, que se fará assim que essas estatísticas estiverem disponíveis, independentemente da vontade e intenções dos seus produtores, facilitará menos a emergência de políticas de reconhecimento de minorias do que de políticas de afirmação nacionalista da maioria. Na Europa, isso significará o reforço de perceções racistas afirmando a superioridade branca, que se alimentarão de uma apropriação preconceituosa e discriminatória de eventuais estatísticas raciais.

7. Considerando os efeitos perversos e riscos que resultam de estatísticas públicas raciais, é totalmente desaconselhável a sua introdução na próxima operação censitária.

IN "PÚBLICO"
29/04/19


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