1. Muitas vezes me tenho referido aqui, e não só aqui, à tragédia da
pedofilia na Igreja. Foram milhares de menores e adultos vulneráveis que
foram abusados. Mesmo sabendo que o número de pedófilos é muito
superior na família e noutras instituições, a gravidade da situação na
Igreja é mais dramática. Por várias razões: as pessoas confiavam na
Igreja quase sem condições, o que significa que houve uma traição a essa
confiança, e o clero e os religiosos têm responsabilidades especiais. O
mais execrável: abusou-se e, a seguir, ameaçou-se as crianças para que
mantivessem silêncio, pois, de outro modo, cometiam pecado e até
poderiam ir para o inferno. Isto é monstruoso, o cume da perversão. E
houve bispos, superiores maiores, cardeais, que encobriram, pois
preferiram salvaguardar a instituição Igreja, quando a sua obrigação é
proteger as pessoas, mais ainda quando as vítimas são crianças. O Papa
Francisco chamou a esta situação "abusos sexuais, de poder e de
consciência". Também diz, com razão, que a base é o "clericalismo",
julgar-se numa situação de superioridade sagrada e, por isso, intocável.
Neste abismo, onde é que está a superioridade do exemplo, a única que é
legítimo reclamar?
Felizmente, há hoje um alerta da opinião
pública e, por isso, Francisco, em vez de condenar ou atribuir outras
intenções aos meios de comunicação social, agradece, pois foi o meio
para que também a Igreja acordasse do seu sono sacrílego.
E, aí,
Francisco tomou uma iniciativa inédita e histórica, convocando uma
Cimeira para o Vaticano, de 21 a 24 de Fevereiro passado. Foi uma
Cimeira com 190 participantes, entre os quais 114 Presidentes das
Conferências Episcopais de todo o mundo, bispos representando as Igrejas
católicas orientais, alguns membros da Cúria, representantes dos
superiores e das superioras gerais de ordens e congregações religiosas,
alguns peritos e leigos.
O Papa queria, em primeiro lugar, que se
tomasse consciência da situação e do sofrimento incomensurável causado,
que fica para a vida. E que se tomasse medidas concretas, de tal modo
que se pudesse constatar um antes e um depois desta Cimeira
verdadeiramente global e representativa da Igreja universal e nos seus
vários níveis. Os três dias estiveram sob o lema tríplice:
"responsabilidade", "prestação de contas", "transparência". O Papa quer -
não se trata de mero desejo - implantar "tolerância zero".
2.
Para implantar essa "tolerância zero" e pôr fim a esta catástrofe na
Igreja, foi publicado, no passado dia 9 de Maio, o Motu Proprio (Decreto
de iniciativa papal), que entra em vigor no dia 1 de Junho. Nesta Carta
Apostólica, com o título "Vos estis lux mundi" (Vós sois a luz do
mundo), o Papa Francisco decreta medidas concretas contra a pedofilia na
Igreja.
Estas normas contra os abusadores e os encobridores
impõem-se, porque, escreve Francisco, "o delito de abuso sexual ofende
Nosso Senhor, causa danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas
e prejudica a comunidade dos fiéis."
Os clérigos e religiosos
ficam obrigados (não se trata de mera obrigação moral, mas legal) a
denunciar os abusos aos superiores, bem como a informá-los sobre as
omissões e encobrimentos na sua gestão. Todas as Dioceses do mundo têm a
obrigação de criar no prazo de um ano um ou mais sistemas estáveis e de
fácil acesso ao público, para que, com facilidade, todos possam
apresentar informações sobre abusos sexuais cometidos por clérigos e
religiosos e o seu encobrimento. O documento ratifica a obrigação de
colaborar com a justiça civil dos países. Aliás, "estas normas
aplicam-se sem prejuízo dos direitos e obrigações estabelecidos em cada
lugar por leis do Estado, em particular as relativas a eventuais
obrigações de informar as autoridades civis competentes". Para lá do
assédio e da violência contra menores (menos de 18 anos) e adultos
vulneráveis, o texto inclui a violência sexual e o assédio que provêm do
abuso de autoridade, bem como a posse de pornografia infantil e
qualquer caso de violência contra as religiosas por parte de clérigos e
ainda os casos de assédio a seminaristas ou noviços maiores de idade.
Impõe a protecção dos denunciantes e das vítimas: quem denuncia abusos
não pode ser objecto de represálias ou discriminação por ter informado;
as vítimas e suas famílias serão tratadas com dignidade e respeito e
devem receber a devida e adequada assistência espiritual, médica e
psicológica; é preciso atender também ao problema das vítimas que no
passado foram reduzidas ao silêncio. Estas normas aplicam-se à Igreja
universal. Solicita-se vivamente a colaboração dos leigos, que podem ter
capacidades e competências que os clérigos não dominam. Evidentemente,
reafirma-se o princípio da presunção de inocência da pessoa acusada e o
segredo da confissão deve manter-se como inviolável. Como escreve o
Papa, "para que estes casos, em todas as suas formas, nunca mais
aconteçam, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações,
atestada por acções concretas que envolvam todos os membros da Igreja."
3.
Na apresentação do documento esteve também Charles Scicluna, Arcebispo
de Malta e Secretário adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé,
considerado o homem forte do Papa na temática anti-abusos. São suas
estas declarações na altura: "Ninguém com responsabilidade na Igreja
está acima da lei. Agora temos uma lei universal que determina as etapas
fundamentais para a investigação de um membro eclesiástico, Bispo ou
Superior Maior, religioso ou religiosa. Acabou a imunidade."
Já
depois da publicação do Motu Proprio, rebentou na Polónia mais um
escândalo: um documentário sobre abusos sexuais do clero polaco, com o
título "Não digas a ninguém", abalou a sociedade. A película sobre casos
de menores abusados sexualmente por religiosos católicos provocou uma
onda de reacções na Polónia, com mais de três milhões de visitas na
internet nas primeiras horas que se seguiram à sua publicação. Entre as
vítimas está também o testemunho de um homem que foi abusado aos 12 anos
pelo sacerdote que foi confessor do ex-presidente polaco e líder
histórico do Solidariedade, Lech Walesa.
Estou convicto de que
agora se está no caminho certo para acabar com esta chaga terrível na
Igreja. Espera-se que, limpa, a Igreja possa ficar mais livre para dar o
seu contributo imprescindível no sentido de ajudar a limpar da mesma
chaga tantas outras instituições, com a instituição familiar à cabeça,
que no mundo infernalizam a vida de inocentes.
NR: Podemos não concordar com alguns autores desta rubrica mas o que nos leva a publicar os seus artigos é o respeito que temos pela pessoa. É hoje o caso.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
19/05/19
.
Sem comentários:
Enviar um comentário