Porque é que estão a ser investidos milhões de euros na investigação e desenvolvimento de smartphones com ecrã dobrável?
Quando Negroponte previu, no seu “Being
Digital” de 1995, que o papel seria extinto dentro de alguns anos, a
digitalização da sociedade ainda não tinha começado. Nessa altura,
imaginava-se que seria possível criar dispositivos flexíveis, imitando
as melhores características do papel e da tinta num formato maleável e
ao mesmo tempo digital. Hollywood teve a mesma ideia em incontáveis
filmes de ficção científica (ainda que o objectivo final seja,
aparentemente, manipular hologramas que aparecem e desaparecem com um só
gesto).
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A realidade tem sido menos criativa na execução desta ideia. O poder
computacional não tem precedentes, os componentes encolhem a um ritmo
estonteante e a inteligência artificial está a entrar-nos pelos
telefones dentro. Mas ainda não conseguimos produzir em massa
dispositivos electrónicos com ecrãs que dobram sobre si mesmos. A
questão é: para que os queremos?
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Há uma década demos sinal que estávamos
fartos de abrir e fechar telemóveis, quando os formatos concha começaram
a perder popularidade para os paralelepípedos tácteis. A ideia de
misturar os dois conceitos fez aparições constantes em pedidos de
patentes nos últimos anos, mas o caso de utilização continua a ser pouco
claro. Muito mais quando vem com uma etiqueta de dois mil euros e se
escaqueira nos primeiros dias de testes.
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Foi o que aconteceu ao Galaxy Fold, que a Samsung anunciou em Fevereiro
com data prevista de chegada ao mercado para 26 Abril. Alerta noticioso:
isso não se concretizou. A fabricante, que anda a trabalhar nisto há
oito anos, decidiu adiar o lançamento por tempo indeterminado, depois de
algumas unidades de teste se terem partido nas mãos dos críticos. Não é
o pior que já aconteceu à líder do mercado de smartphones e
provavelmente não terá grande impacto na sua reputação – para uma
fabricante que resiste a baterias que explodem, precipitar-se com um
produto que ainda não está pronto para a ribalta é apenas um soluço.
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Enquanto a expectativa se desvia para as outras marcas que estão prestes
a lançar dispositivos semelhantes, incluindo Huawei e Xiaomi, a
reflexão sobre esta tecnologia está presa no conceito. Porque é que
estão a ser investidos milhões de euros na investigação e
desenvolvimento de smartphones com ecrã dobrável? Qual é o caso de uso,
para lá da diferenciação morfológica e o brilharete nas conferências
tecnológicas?
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A vantagem mais óbvia é a possibilidade de ter um ecrã maior que se
torna compacto quando fechado, o que permite imaginar mais espaço para
multi-tarefas num dispositivo que já se tornou o rei da computação
móvel. No entanto, estes dispositivos terão de ser mais robustos que os
smartphones normais, que só por si já atingiram dimensões-limite para os
bolsos e as mãos dos utilizadores. Os preços são proibitivos, tal como a
tecnologia está hoje. E apesar de se tratar do primeiro formato
diferente de telemóvel em mais de dez anos, o Fold, o Mate X e os que se
seguirão têm de cumprir as mesmas leis de física e mecânica.
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Mais interessante seria devotar esse investimento a um material – ou um
formato – completamente diferente. A morte do smartphone já foi
vaticinada várias vezes, mas não temos nada que o substitua realmente e o
que as fabricantes enfrentam é um mercado estagnado em que todos os
modelos parecem iguais. Nunca conseguimos fazer tanto com um aparelho
tão pequeno, mas também nunca tivemos um ciclo de atenção tão curto e
uma necessidade tão grande de novidades constantes. Os smartphones
dobráveis poderão ser interessantes durante algum tempo, mas só por si
não parecem mudar a essência do dispositivo.
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Um ecrã electrónico flexível é muito difícil de desenvolver e fabricar,
está mais que visto. Mas quem sabe a Apple, depois de uns anos a tirar
notas com os erros dos outros, decida entrar na categoria para
“revolucionar” tudo e convencer-nos que a ideia foi sua desde o
princípio.
IN "DINHEIRO VIVO"
30/04/19
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