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IN "OBSERVADOR"
25/04/19
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As mentiras e as aldrabices
das listas de espera
O anúncio de que podemos passar a tirar o bilhete de identidade
em 5 minutos e o relatório que confirmava que os números das listas de
espera tinham sido mascarados tirou-me do sério. E tenho provas.
Odeio que me tomem por parva. Que nos achem burros. E que
muitos continuem a cair nas manhas próprias de vendedores de tapetes do
grande bazar de Istambul. A técnica não é de agora, é certo.
Mas o anúncio de que podemos passar a tirar o bilhete de identidade em 5 minutos e o relatório do grupo independente criado pelo Governo
que confirmava que os números das listas de espera para consultas e
cirurgias tinham sido mascarados tirou-me realmente do sério. E fiquei
ainda mais piursa porque parece que sou das poucas.
Tirar o bilhete de identidade em 5 minutos, em vez dos 15/20 actuais,
diz o Governo?! Mas estão a gozar com quem?! Se alguém tiver sorte com o
funcionário de serviço, a coisa até pode demorar menos de meia hora… a
partir do momento em que nos sentamos na cadeira. O problema é o antes e
o depois. Por marcação, a última vez que tentei optar por essa coisa
tão moderna e prática, tinha vaga para quase dois meses depois. Num
local normal, é preciso tirar senha antes das 8h30 (o mais tardar acabam
às 11h00) e depois aguardar duas a quatro horas na fila (sendo
optimista) até aos tais minutos finais. E o mesmo tempo (e processo)
para ir levantar o documento. Mas alguém ainda acredita nestas mentiras
que nos impingem todos os dias?
Sobre as listas de espera vou usar
um outro exemplo concreto e pessoal. Peço desculpa, raramente o faço,
mas o caso é tão demonstrativo das aldrabices que têm sido feitas, que é
a melhor forma de explicar as coisas. A minha mãe está a aguardar uma
cirurgia à coluna há um ano (desde 16 de Abril de 2018). É uma operação
importante, já que o problema nos discos e na cartilagem tem vindo a
degradar as suas condições de vida e a sua mobilidade no dia a dia. A
neurocirurgiã que a seguia ainda se ofereceu para o fazer no particular,
coisa para seis mil euros. Sem possibilidades financeiras para tal, nem
seguro de saúde, nem sequer ADSE (como a maioria dos portugueses que
recorre ao SNS), decidiu aguardar o máximo de 6 a 9 meses que lhe deram
de média para a intervenção num hospital público ou num privado graças
aos também famosos vales-cirurgia.
Ora vamos lá a essa maravilha
criada para resolver as inaceitáveis e intermináveis listas de espera
que não paravam de aumentar. Estaria a falar a sério agora, porque a
ideia é realmente boa, não se desse o caso do que vou contar a seguir. O
primeiro vale surgiu em tempo admissível, cinco meses, em Setembro, mas
com uma armadilha. Os três hospitais privados à escolha ficavam todos
acima do Douro quando a senhora vive, sozinha, no seus 75 anos,
muitíssimo abaixo do Tejo. A recusa foi feita com base nessa logística
complicadíssima, devidamente explicada e aceite. Veio o segundo vale em
Novembro, prazo também normal, reconheço, e já só tinha duas
possibilidades de opção além Douro… só que a outra era em Lamego! Já
conformadas com tal solução, questionámos sobre o acompanhamento,
transportes e demais questões práticas. A resposta foi que tal não
existia. O vale é apenas para a própria, pelo que era melhor tentar uma
terceira vez.
Passou um ano e nada de notícias. Altura para
perguntar aos serviços o que se passava e fazer o ponto da situação (não
vos vou maçar com o tempo e os problemas até chegar aos contactos
necessários). A resposta veio acompanhada de outra grande invenção
recente: o portal do utente.
Era só fazer o registo e estava lá tudo. À distância de um clique — que
todos têm e sabem a usar a Internet, como se sabe, sobretudo os mais
velhos e mais dependentes! — um acesso global ao nosso cadastro de
doenças, vacinas, operações, listas de espera e afins. Mas nada. Nem
sobre a futura cirurgia dela, nem sobre as anteriores. Ou seja, primeira
mentira: o fantástico processo não estava actualizado.
Queixa
feita e alguma eficácia, sejamos sinceros. Dois dias depois lá aparecia
uma parte dos seus registos médicos e a informação do seu número na
fila, com detalhes: estava em 34º lugar para ser operada no hospital de
origem (boa!), e, de acordo com os processos do estabelecimento, seria
atendida em “22 semanas (mais/menos 15 dias)”. Ou seja, lá para meio de
Setembro. Como o seguro morreu de velho e o desconfiado ainda está vivo,
toca a contactar o dito hospital. Após várias tentativas e muita espera
com música de elevador em alta voz, uma atenciosa funcionária (sem
ironia!) respondeu: pois que não acreditasse naqueles prazos, que a
única neurocirurgiã de serviço tinha ficado de baixa no primeiro mês de
gravidez e estaria assim até ao final do tempo em que podia ficar com o
bebé, contas feitas, voltaria apenas daqui a ano e meio. Ou seja,
segunda mentira: aquilo que vem no portal da saúde não conta para nada.
Conselho
recebido: ir ao médico de família e tentar que este abrisse um novo
processo para um hospital de Lisboa. A táctica tinha a vantagem de ela
poder ser operada numa zona aceitável, mas uma enorme desvantagem, iria
de novo para o fim da lista. Ia tudo começar de novo. Aliás, é esta uma
das falhas que o relatório independente aponta à agora ministra da Saúde
sobre a manipulação das listas de espera e que a própria admite… como normal. Uma terceira mentira, claro: é apenas uma manobra que reduz os números para apresentar ao eleitor descuidado.
Mesmo
assim, a opção foi levada em conta. De volta ao portal pessoal do SNS
para fazer o que é suposto ser simples: marcar uma consulta online para o
centro de saúde local. Um milagre, tendo em conta que por lá
habitualmente os telefones tocam horas sem ninguém atender, é sempre
preciso fazer os dois quilómetros de distância para ir pessoalmente
tratar da marcação (de táxi, tendo em conta que as dificuldades em andar
se têm naturalmente agravado) e nunca nada é garantido. Ali não,
bastaram uns segundos à frente do computador. O SMS (algo com que
qualquer idoso também lida sem problemas, pois claro!) de confirmação
foi recebido no último domingo com a hora e o dia da consulta: seria
logo na segunda, às 9h30.
Quarta mentira descarada: a eficácia é mesmo
só para inglês ver — no centro não havia qualquer agendamento, nem
sequer sabem o que é isso do portal e das marcações online e ainda por
cima o médico de família também está de baixa por tempo indeterminado.
Foi apenas uma deslocação em vão, gastos e esforços desnecessários e uma
desilusão.
Pelo meio houve ainda mais um telefonema para os
responsáveis pelas listas de espera e o pedido de emissão de um novo e
terceiro vale. A resposta foi positiva, mas com o alerta que tudo é
automático e que virão hospitais não da zona de residência ou da de
familiares directos, mas sim para onde o computador sortear e houver
vagas. Que o mesmo é dizer, amanhem-se: é pegar ou largar.
Vamos
só resumir isto: o que nos vendem como a última coca-cola no deserto,
estas medidas modernas anunciadas com pompa e circunstância, a imagem
que nos dão de um país cool, é uma farsa. Nada corresponde, de
facto, à realidade: é só fazerem o teste. Nada se adapta de facto, à
realidade: é só falarem com as pessoas. Nada funciona realmente: é tudo
banha da cobra.
Num país a sério, uma ministra acusada de alterar listas de espera não podia ser ministra. Num país a sério, um governante que nomeia familiares não podia ser governante (em França, Fillon vai ser julgado por corrupção). Num país a sério, a Saúde era levada a sério: e não se resumia a guerras ideológicas sobre as PPP ou a batalhas em surdina entre o ministério e uma classe, como a dos enfermeiros, com acções que se não são ilegais são pelo menos vingativas.
Vivemos
num país de aldrabices e de mentiras. Dão-nos gato por lebre todos os
dias. Pintam-nos quadros cor-de-rosa e criam realidades paralelas como
se fossemos papalvos. E mesmo assim, muitos continuam a engolir estas
balelas como compram os produtos milagrosos vendidos na televisão. E
depois ou acreditam mesmo que funcionam ou calam a vergonha de ter sido
enganados. Adorava ser a única a ter queixas. Não gosto é de ser a única
a queixar-me.
IN "OBSERVADOR"
25/04/19
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