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IN "OBSERVADOR"
28/02/19
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O galã de Santa Comba
Agora foi a vez da TVI apresentar Salazar como um grande galã fotografado com a francesa que se prestou a isso, sendo o autor da reportagem um "notável" fotógrafo amador: o agente da Pide Rosa Casaco.
Agora foi a vez da TVI. Há anos que os amantes de Salazar e da ditadura
tentam fazer dele um galã, um sedutor irresistível não só para as
senhoras do regime, mas para toda e qualquer esposa, mãe ou rapariga
solteira de Portugal continental e ultramarino. Trataram mesmo, e desde
os anos 50 de internacionalizar o mito, imagine-se, com uma francesa. As
famosas francesas de tão bom gosto e estilo, fariam certamente mais
efeito que uma governanta portuguesa, ou uma senhora do Movimento
Nacional Feminino.
A tentativa de deitar por terra a castidade do ditador já vem de
António Ferro que bem se esforçou por transformar o «Botas» num
irresistível sedutor. Essa tentativa foi passando por diversos
propagandistas/políticos do anterior regime, como Moreira Batista ou
pelas memórias escritas de ex-ministros ou ex-embaixadores, com relatos
das encomendas recebidas para a compra de prendas destinadas às
seduzidas do presidente do Conselho.
Nunca conseguiram. A imagem
não cola com o ditador tacanho e provinciano, sem mundo, rodeado de
pides e fechado na residência oficial, saindo apenas para as longas
viagens a Santa Comba…
Mas, curiosamente, os amantes ou os
saudosos do antigo regime insistem e vão publicando livros e filmes e
reportagens, em vão. Nos anos 50, foi certamente uma necessidade mudar a
imagem de Portugal e do seu ditador. Vivia-se a alegria do pós-guerra e
era preciso maquiar o regime. Todos os ditadores o fizeram. Os
documentários sobre Salazar, incluindo a famosa manifestação de 1959 das
«mães, esposas e filhas» do regime, eram uma constante nos cinemas,
antecedendo todo e qualquer filme.
Agora, foi a vez da TVI
apresentar Salazar como um grande sedutor fotografado com a francesa que
se prestou a isso, como um galã. E a TVI explica que o autor da
reportagem é o grande fotógrafo amador: o agente da Pide Rosa Casaco.
Casaco
é apresentado como um fotógrafo que «apanhou» Salazar e Christine em
românticas, comprometedoras e secretas poses. Nunca diz a reportagem
que Rosa Casaco foi um dos mais sinistros agentes da Pide e que foi ele
que organizou, dirigiu e participou pessoalmente no assassinato de
Humberto Delgado.
Aliás, o Rosa Casaco que fugiu de Portugal logo a
seguir ao 25 de Abril foi julgado à revelia pelo assassinato do General
Sem Medo e da sua secretária pessoal, a brasileira Arajaryr Campos –
ambos atraídos para uma cilada fatal, perto de Badajoz, como é sabido.
Mas
não ficou por aqui a reportagem da TVI a pintar a cor de rosa o pide
que tanta gente torturou. Apresentou-o como tão bonzinho, que além de
ter feito umas fotografias, surpreendendo Salazar e a madame a
passear entre camélias, sentados nas escadas da casa do ditador
(certamente sem saberem que um paparazzo os seguia), ainda o apresentou
como um pide que dispensou um agente que maltratou e bateu num menino da
vizinhança.
Rosa Casaco foi dos mais escabrosos e brutais agentes
da Pide, que comandava interrogatórios a presos políticos. Não era um
simples agente de brigadas de rua. Dirigia interrogatórios e torturava
presos na António Maria Cardoso, mandava continuar ou parar torturas,
como a do sono. Todos os presos políticos que por lá passaram conheciam
o seu nome e a sua triste fama e sabe-se como foi diligente e brutal
até à queda do regime, em 1974.
Curioso teria sido se a reportagem
da TVI confrontasse os espectadores com a realidade tantas vezes
escrita e comentada de que os grandes responsáveis dos regimes
ditatoriais são pessoas como as outras e, por isso mesmo, mais
perigosos. Rosa Casaco gostava de fotografia como o SS que comandava
Auschwitz, gostava de rosas e tratava delas no intervalo do almoço, ou
como Béria que gostava de ver filmes com Estaline, ou Hitler que pintava
quadros.
No ano em que são feitas as fotografias de propaganda
do regime pelo pide Casaco com a «jornalista» francesa, que aceita este
triste papel, funcionava — para escândalo do mundo saído da II Guerra
Mundial e a viver a alegria da vitória –, além das cadeias de Peniche,
de Caxias e do Aljube, o Campo de Tarrafal em Cabo Verde que só veio a
ser encerrado, por pressão internacional, em Janeiro de 1954, tendo sido
apenas reaberto por Adriano Moreira, Ministro das Colónias, em 1961,
para presos das ex-colónias, sobretudo da Guiné e de Angola, mas já sem
portugueses.
Neste caso, a tentativa de apresentar Oliveira
Salazar como bucólico galã de Santa Comba, levou mesmo a que a
reportagem da TVI, diga-se que sem novidade, apresentasse a governanta
do ditador como uma inteligente guardiã do Presidente do Conselho,
frequentadora de recepções e mundana de leque em punho.
Lembro-me
bem, logo a seguir ao 25 de Abril, das memórias dos contínuos de São
Bento, relatando que a Dona Maria vendia ao sábado no palácio as
galinhas criadas nos galinheiros de São Bento, mortas, depenadas e
pesadas numa balança de cozinha que por lá andava. Cada contínuo só
podia comprar metade da ave porque eram muito baratinhas e criadas a
milho.
Esta recordação é mais compatível com a imagem de D. Maria
do que transformá-la numa misteriosa governanta. O mesmo se pode dizer
do pide Casaco convertido num fotógrafo de génio, ou a francesa em
jornalista. A juntar a tudo isto a reportagem, pasme-se, retrata Silva
Pais, chefe máximo da Pide, como pai da filha fugida para a
revolucionária Cuba e, imagine-se, visitante clandestino da Ilha de
Fidel.
E Salazar? O ditador sombrio e sinistro que nos tirou a
liberdade, fez o país miserável, as mulheres seres de segunda (para eles
a quarta classe e para elas bastava a terceira), que nos sujeitou a
três guerras coloniais, submeteu Portugal à censura e ao medo da Pide, é
transformado num sedutor incorrigível a quem pretendem retirar o mito
da castidade e do celibato, e substituir por algo mais moderno e
apresentável, assegurando que, no fundo, morria de amores por qualquer
uma que lhe passasse por perto.
A entrevista recorreu mesmo a
lindos poemas de sua autoria, tendo sido lido um que não era mas podia
ter sido dedicado a qualquer bela francesa. O poema de Salazar,
declamado na TVI por um actor a imitar-lhe a voz, foi, sem dúvida o
momento mais comovente e ridículo da reportagem.
Uma conclusão há a
tirar destes titânicos esforços para mudar o passado e esquecer a
história: por mais que se esforcem cineastas, repórteres, escritores e
memorialistas, a coisa não pega, o Botas é o botas de Santa Comba, sem
ofensa para Santa Comba Dão.
Por último, sublinho que os que
passam a vida a gritar, chamando tudo e todos de fascistas, calaram-se.
Nem se manifestaram os indignados profissionais da esquerda de punho no
ar.
Pois eu indignei-me mesmo e lembrei-me de em criança passar em
Santa Comba, a caminho de Castelo Branco, e ver da janela do carro a
guarda ao longo de vários cruzamentos e pontes, quando Salazar estava no
Vimieiro. Recordo o meu pai a dizer baixinho, com a voz que nos marca a
infância, «os piores são os pides que não têm farda». Metia-me medo
aquela estrada e aqueles quilómetros que fazíamos depois em silêncio.
Veio-me à memória o medo e ao pensamento a vontade de contribuir para que não apaguem a memória.
IN "OBSERVADOR"
28/02/19
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