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As mulheres do Daesh:
vítimas ou cúmplices?
Quando os Estados europeus analisam o regresso dos seus cidadãos daquele palco não podem discriminar entre os géneros. Nenhum pode aceitar receber estas mulheres sem analisar exaustivamente as razões que as conduziram à Síria e o seu percurso até ali.
Nos últimos anos, muito se analisou as deslocações de homens europeus
para a Síria para aderirem ao grupo Estado Islâmico (EI) e eventuais
consequências para a Europa. Menos se falou sobre o êxodo de mulheres
para aquele território a fim de se juntarem a um grupo terrorista: se o
envolvimento feminino na militância jihadista não é um fenómeno inédito,
a sua dimensão e as motivações reveladas causaram estupefacção.
Com o quase desaparecimento territorial do califado,
milhares de mulheres e filhos de jihadistas chegam aos campos de
deslocados na Síria. Pressionados por organizações internacionais, ONGs e
pela coligação FDS, os países europeus enfrentam o dilema relativamente
ao que fazer com os seus nacionais que ali se encontram. O debate sobre
a responsabilidade dos Estados foca-se, por um lado, no dever de
proteger os seus cidadãos e, por outro, na obrigação de garantir a
segurança nacional. No frágil equilíbrio deste debate pesam duas
questões: a humanitária e a securitária.
Cerca de 5000 crianças estrangeiras vivem nos campos de deslocados
lotados. Muitas nasceram na Síria e só conhecem morte e destruição. Se,
enquanto sociedade, aceitamos a ideia de que não deve pender sobre as
crianças qualquer crime cometido pelos progenitores, então não devemos
condenar estas crianças a pagar pelos terríveis erros dos seus pais.
Enquanto vítimas, aquelas devem ter os seus direitos protegidos e ser
retiradas de situações desumanas que, em caso de sobrevivência, por si
só podem potenciar futuros comportamentos problemáticos. Os Estados
europeus podem ser o garante desta protecção. Agindo em conjunto com as
organizações no terreno, podem tentar repatriar estas crianças e, quando
possível, entregá-las às respectivas famílias. Em conjunto com estas,
devem promover a sua recuperação física, psicológica e emocional e a sua
integração social. Mais, devemos ter em atenção que as crianças mais
velhas, tendo sido expostas a um nível de brutalidade anormal, podem
mostrar alguma insensibilidade e propensão para a violência, pelo que
poderão exigir um acompanhamento mais intensivo da parte das
instituições, a fim de identificar estratégias adequadas à sua inclusão
socioeducativa e incutir-lhes valores humanistas. Os pais falharam-lhes;
os Estados europeus não o devem fazer.
A questão das mulheres deve ser tratada numa perspectiva securitária. A mobilização daquelas
começou em 2013, tendo o fluxo aumentado a partir do Outono de 2014,
após a proclamação do califado a 29 de Junho.
Muitas ocidentais explicaram a sua decisão com razões semelhantes às
dos homens: motivadas pela percepção de que a comunidade muçulmana é
vítima de perseguição e opressão, responderam aos apelos à emigração
para um território onde poderiam viver uma vida islâmica e participar na
construção de uma nova nação e identidade comum. Outras decidiram
acompanhar familiares que participavam na luta.
Estas mulheres provêm
de vários estratos sociais e profissionais: algumas são muito jovens,
outras são casadas e mães que, em alguns casos, decidiram abandonar o
lar e viajar com os filhos; algumas são estudantes ou têm cursos
superiores, outras têm o ensino básico; algumas vêm de famílias normais,
outras de meios disfuncionais. Desafiando todas as expectativas
racionais sobre o seu comportamento, estas mulheres decidiram abandonar a Europa
onde se proclama a igualdade e a liberdade de escolha em prol de uma
vida onde, aparentemente, abdicam da sua capacidade de tomar decisões e
são obrigadas ao cumprimento de normas rígidas. Combinando motivações
pessoais e políticas, tentando superar restrições que pendem sobre si ou
encontrar um propósito, todas se deixaram seduzir pelo projecto do EI.
Naquele foram donas de casa, esposas, mães, polícias da moralidade,
propagandistas e recrutadoras. Algumas foram médicas e professoras.
Alegadamente, estiveram excluídas da luta, mas muitas foram treinadas
para manusear armas. Seja como for, dedicaram-se ao grupo e trabalharam
para o seu funcionamento.
Hoje, estas mulheres dizem-se vítimas: de maridos que as obrigaram a
viajar ou as iludiram com umas supostas férias; de recrutadores online
que lhes prometeram uma existência dourada no Califado; de pais que
decidiram ir para um local onde pudessem viver de acordo com a sharia.
É fácil cair na tentação de explicar estas deslocações através de uma
perpetuação dos papéis de género socialmente construídos. Estes
representam as mulheres como passivas e sujeitas a noções romantizadas
de luta, o que as torna alvos fáceis de maridos manipuladores e de
imagens de combatentes viris. Deste modo, é-lhes negada agência nas suas
tomadas de decisão. Porém, seja qual for a razão que as levou ao
califado, poucas podem negar que conheciam a natureza do grupo que o
proclamou. Não na época da Internet e das redes sociais que elas tão
sabiamente souberam utilizar! Ao aderirem a um grupo terrorista, estas
mulheres tornaram-se coniventes com os actos hediondos cometidos por
aquele: matanças indiscriminadas através de métodos bárbaros,
escravização e violação de mulheres e crianças, promoção de atentados em
todo o mundo…
Quando os Estados europeus analisam o regresso
dos seus cidadãos daquele palco não podem discriminar entre os géneros,
até porque negar agência a mulheres que fizeram escolhas moralmente
duvidosas equivale a negar a igualdade sexual. As mulheres podem
representar uma ameaça tão séria à segurança nacional quanto os homens e
o risco que colocam não se restringe a um possível envolvimento em
formas activistas violentas, mas é mais abrangente. Apesar de muitas se
mostrarem desapontadas com a vida no califado, tal não significa que
renunciaram a ideias com as quais conviveram tantos anos. Na sua
condição de viúvas ou mães de mártires do conflito sírio, aquelas podem
gozar de um estatuto especial e vir a desempenhar um papel proeminente
nos milieus jihadistas europeus. Algumas manterão ligações a
uma rede jihadista internacional. Viúva de um jihadista, Malika El-Aroud
foi, durante anos, responsável por uma rede de envio de voluntários da
Bélgica para o Afeganistão.
Assim, nenhum Estado europeu pode aceitar receber estas mulheres sem
analisar exaustivamente as razões que as conduziram à Síria e o seu
percurso até ali (nomeadamente com quem foram casadas), a fim de aferir
as consequências para a segurança e coesão social, as opções para lidar
judicialmente com aquelas ou as estratégias para promover a sua
reintegração na sociedade.
* Investigadora doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais,
com uma tese sobre o Jihadismo na Europa. Autora de vários artigos sobre
Islamismo, Jihadismo e Médio Oriente.
IN "PÚBLICO"
25/03/19
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