23/03/2019

MAFALDA ANJOS

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Jerónimo, 
o democrata relutante

O que será preciso mais para o PCP reconhecer que a Coreia do Norte é uma ditadura belicista e autoritária? Homicídios públicos? Calma, também há: o meio-irmão do dirigente norte-coreano Kim Jong-un, crítico do regime, foi mandado assassinar na Malásia

Vamos ao bê-a-bá da ciência política. Pelo menos, desde a Grécia Antiga, século 5 a.C. que o conceito de democracia está definido: trata-se de um regime em que a soberania vem do povo e é exercida por ele. Aprende-se na escola que da contração das palavras demos (povo) + kratos (poder) se chega ao conceito básico de um regime em que o poder é exercido através do sufrágio. O conceito evoluiu ao longo dos tempos, com os séculos XIX e XX a acrescentarem a dimensão universal ao voto: todos os homens e mulheres têm o direito de participar nesta escolha. A ideia de democracia passou a incluir conceitos que lhe são hoje essenciais, e que a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas ajudou a resumir: respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, liberdade de expressão, acesso ao poder de acordo com o Estado de Direito, realização de eleições livres e periódicas por sufrágio universal e voto secreto, um sistema pluralista de partidos e organizações políticas, separação de poderes, independência da Justiça, transparência e responsabilidade da Administração Pública, meios de comunicação social livres, independentes e pluralistas. Conceitos que são universalmente aceites e definidos à luz nas Nações Unidas, da União Europeia e, já agora, da Constituição Portuguesa.

Vem este relambório a propósito da declaração de Jerónimo de Sousa sobre a Coreia do Norte, que espelha a posição inconcebível do Partido Comunista Português em relação a valores fundamentais. Perante a pergunta sobre se a Coreia do Norte é ou não uma democracia, Jerónimo de Sousa respondeu ao site Polígrafo que “é uma opinião”. “O que é a democracia? Primeiro tínhamos de discutir o que é a democracia”, continuou, em puro delirium tremens, o líder comunista, recusando-se a classificar o regime comunista de Pyongyang como aquilo que é verdadeiramente: uma ditadura, e das mais opressivas do planeta.

Não é caso único no PCP: ainda em 2003, o então líder parlamentar Bernardino Soares também conseguiu dizer que tinha “dúvidas de que a Coreia do Norte não seja uma democracia”. Em 2017, uma delegação da Coreia do Norte subiu ao palco na Festa do Avante, onde foi saudada, e o jornal do partido escrevia que “é necessário romper a densíssima cortina de fumo que caiu sobre a verdade histórica e combater a campanha maniqueísta que sistematicamente diaboliza e caricatura a República Popular Democrática da Coreia”. Mais recentemente, em junho do ano passado, António Filipe, vice-presidente da bancada do PCP, fugiu numa entrevista a sucessivas questões sobre se Kim Jong-un era um ditador, dizendo que “há muitos critérios para aferir aquilo que são a validade das respostas e o carácter mais ou menos positivo da ação política de cada um que não se compadece com situações de preto e branco ou de rótulos”. Violinos, portanto.

Para assentar ideias, talvez seja bom recordar aos dirigentes comunistas os relatórios das Nações Unidas que atestam as listas infindáveis de crimes contra a Humanidade naquele país: campos de prisioneiros, sequestros, assassínios, prisões arbitrárias, discriminação, violações da liberdade de expressão e de movimento, escravidão, tortura, doutrinação. E depois há os detalhes de quase tragicomédia, como o dia em que é proibido sorrir (8 de julho, que marca a morte de Kim Il-sung) ou as eleições com resultados de 100% dos votos e sem abstenção (em que o povo tem de escolher sim ou não à lista única, sendo um não uma perigosa traição). O que será preciso mais para o PCP reconhecer que a Coreia do Norte é uma ditadura belicista e autoritária? Homicídios públicos? Calma, também há: o meio-irmão do dirigente norte-coreano Kim Jong-un, crítico do regime, foi mandado assassinar na Malásia.

A cegueira ideológica de um partido toldado por dogmas anacrónicos e que ficou sem referências históricas não se fica pela Coreia do Norte, claro está. A posição do PCP sobre a Venezuela e a Síria é sintomática de uma total ausência de noção sobre o que são os valores democráticos fundamentais, em 2019 como há várias décadas: apoia publica e ostensivamente o Governo de Nicolás Maduro e condenou recentemente o Governo pelo reconhecimento de Guaidó, da mesma forma que em 2017 votou contra os votos de condenação aos bombardeamentos das populações no enclave de Ghouta e aos ataques com armas químicas levados a cabo na Síria pelo regime de Bashar al-Assad. De repente, faz lembrar uma das muitas frases atribuídas a Karl Marx: “Os olhos que só veem a mentira quando percebem a verdade cegam.” Ou, como se diria por cá, o pior cego é aquele que não quer ver...

IN "VISÃO"
22/03/19

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