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IN "PÚBLICO"
05/01/19
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Arquivos particulares e
responsabilidade pública
Se, dada a sua extensão e importância, os arquivos de âmbito estatal estão mais expostos ao escrutínio público, os arquivos privados merecem também a nossa atenção.
A 15 de Setembro de 2014 o Jornal de Notícias divulgava que o
Estado português tinha "mais de cinco mil quilómetros (como ir do Porto
a Moscovo) de arquivos por organizar". Nem tudo deve ser conservado,
mas é necessário conhecer o valor informativo, a relevância enquanto
prova factual e a importância histórica desta documentação para se
determinar o seu destino final. A entidade responsável por definir os
critérios de arquivo dos documentos produzidos pela administração
pública, a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas
(DGLAB), tem dedicado parte substancial dos seus esforços a esta tarefa.
Os arquivos privados também estão sujeitos às normas emanadas da DGLAB,
que deve ainda apreciar as regras de acesso estabelecidas pelos seus
proprietários para posterior homologação pela respectiva tutela
governamental.
Dada a sua extensão e importância, os arquivos
estatais estão muito expostos ao escrutínio público, porém alguns
arquivos privados merecem a nossa particular atenção, nomeadamente, o
Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares e o Arquivo Ephemera,
biblioteca e arquivo de José Pacheco Pereira.
O arquivo da Fundação Mário Soares (FMS), que foi pioneiro na adopção de
soluções de digitalização e disponibilização de documentos online,
tem hoje à sua guarda uma quantidade impressionante de acervos de
opositores ao Estado Novo e de dirigentes de Movimentos Nacionalistas
Africanos e de Timor-Leste, inventariados e disponíveis ao público.
Também se deve a este arquivo o projecto Casa Comum, uma plataforma agregadora de informação que é hoje o maior repositório digital de documentação em língua portuguesa.
Com a morte de Mário Soares em 2017, o futuro do arquivo tornou-se incerto e recentemente o jornal PÚBLICO noticiou que se pondera o seu desmantelamento, sendo provável que muitos dos fundos documentais venham a ser incorporados na Torre do Tombo
ou sejam devolvidos aos proprietários, que os colocaram à guarda da FMS
a troco do tratamento e da disponibilização pública das suas colecções.
Estima-se que mais de 90% dos documentos do arquivo da fundação estejam
nesta última situação, incluindo o arquivo pessoal de Mário Soares. Se
os dirigentes da FMS optarem pelo desmembramento do arquivo, os
responsáveis pela política nacional de arquivos devem contribuir para
assegurar a sua integridade. Tal não quer dizer que a DGLAB deva
incorporá-lo na Torre do Tombo, pois a vocação deste organismo é guardar
documentos produzidos pelos organismos centrais do Estado. Mas há
alternativas, como a sua integração na estrutura de arquivos da Câmara
Municipal de Lisboa, mantendo-se o funcionamento nas actuais
instalações.
Também o Ephemera,
arquivo privado que reúne documentação para a história dos movimentos
sociais, requer cuidados. Trata-se de uma colecção constituída por
materiais herdados, adquiridos e doados, cujo conteúdo Pacheco Pereira
tem vindo a divulgar através de diversas iniciativas de que se destaca a
criação de um website, um programa de televisão e várias publicações.
Porém, o acesso público a este arquivo não tem sido garantido nem mesmo a
investigadores. Para prestar um serviço público não basta proclamar o
ser cada vez "mais público" o acesso a estes "arquivos privados" nem
mesmo utilizar como epígrafe no website a afirmação de Samuel Johnson — "the two offices of memory are collection and distribution"; é necessário que o serviço seja de facto público.
Outra questão que se coloca relativamente ao Ephemera é a de saber o que
lhe irá suceder no futuro. Seria desejável que se evitasse algo
semelhante ao que ocorre actualmente com o arquivo da FMS. Tal poderia
ser acautelado se a colecção fosse integrada num arquivo verdadeiramente
vocacionado para o serviço público, alinhado com os procedimentos
definidos nacional e internacionalmente para o tratamento documental,
que garantisse a sua consulta a todos os interessados, e com
financiamento dedicado ao seu tratamento, estudo e disseminação. Para
este efeito, talvez não fosse descabido apoiarmos Pacheco Pereira na
constituição de um fundo.
Independentemente das soluções adoptadas, tanto o arquivo da Fundação
Mário Soares como o de Pacheco Pereira são fundamentais para a
compreensão da história contemporânea pelo que requerem a atenção
imediata dos responsáveis políticos.
* Investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
IN "PÚBLICO"
05/01/19
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