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IN "VISÃO"
21/01/19
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As Religiões e o Estado,
ou para um questionamento
dos fundamentalismos
Que poder deve ter um religioso para dizer se um “outro” pode, ou não, fazer uma interrupção voluntária da gravidez? Levemos o exemplo pelo viés do quase absurdo: se, pela lei, uma cidadã puder fazer um aborto, isso implica que as religiosas são obrigadas a também abortar? Mais uma vez, confunde-se Direito Civil com a medieval noção de Cristandade: nada pode sair fora dela e tudo o resto deve ser extirpado. Uma reflexão no "Dia Mundial da Religião"
Lançada pelos Bahá’ís em 1950, o Dia Mundial da Religião, colocado
significativamente no singular e não no plural, mostra-nos uma das
dimensões essenciais dessa religião tão humanista e tão empenhada nas
questões da dignidade e dos Direitos Humanos.
Hoje, para
além dos Direitos Humanos, falamos também muito em Deveres Humanos. No
campo religioso, para além de Liberdade Religiosa, associativa ou
individual, que deve ser inquestionável e devemos ajudar a alargar,
também devemos equacionar os «Deveres das Religiões». Partindo do
princípio, comprovado até ao momento, de que estamos todos “condenados” a
viver no mesmo mundo, há que procurar formas e equações que nos
permitam viver num oikos equilibrado, numa oikos+nomia harmoniosa, num ecossistema plural respeitador das diferenças.
Se
a Religião, como campo de crença e de vivência livre de cada indivíduo,
tem de ser a plena afirmação da liberdade, as instituições, como
agremiações de crentes, devem ser instrumentos que fomentem o bom
ambiente, a boa vizinhança. Mas estamos longe de as religiões suportarem
pacificamente a diferença, uma vez que são cosmovisões que organizam as
leituras do mundo através, muitas vezes, de sistemas fechados de
verdade que envolvem e se aplicam mesmo a quem não é religioso.
Circunscrevendo
a problemática a elementos mediaticamente mais visíveis, nos últimos
anos temos assistido a um fenómeno em que as religiões tomam,
crescentemente, partido em questões políticas, em questões de definição
da sociedade, nas chamadas “questões fracturantes”.
Os movimentos
de negação, de recusa, ou mesmo de demonização de certos fenómenos
sociais ou culturais têm vindo a ganhar algum terreno e deixa-nos
crescentemente preocupados. Tal facto parece-me que tem raiz numa
cimentada confusão dos poderes sociais e políticos que muitas confissões
fazem sem qualquer pudor. São poucas e poucos líderes que o fazem, mas,
seguindo as pegadas do Brasil, por exemplo, a situação merece um olhar
redobrado.
Na base destes posicionamentos está uma totalmente
retrógrada interpretação do papel social das confissões e, em especial, o
renascimento de uma visão arcaica, pré-moderna, em que não se vislumbra
capacidade alguma de distinguir os poderes que nos regem e, muito
menos, de assumir que a sociedade não é um espelho das suas convicções
religiosas.
A raiz desta postura encontra-se nos fundamentos que
levaram, na Idade Média e, mais tarde, em Portugal, à instauração do
Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição. Ao longo da Idade Média,
postulou-se e assimilou-se a noção de Cristandade. A esse princípio,
correspondia um território, um povo, uma ideóloga religiosa. Por
natureza, na Cristandade havia… cristãos. Tudo o resto podia ser
extirpado, purificando a dimensão religiosa.
Nessa ideia de
Cristandade, nada podia ter lugar que não encaixasse numa ortodoxia que
tudo geria, do político ao social, passando pelo cultural. O que fosse
contra a fé estipulada, merecia a reprovação e, no limite, o seu fim
imediato – para os livros, a queima, para os humanos, a morte. O
Tribunal do Santo Ofício, nascido em plano século XIII, era o
instrumento oficial que visava extirpar esses males, as heresias, da
sociedade.
Felizmente, no longo caminho do século XVI ao XVIII,
aprendemos que a Liberdade é um valor. Ora, como pode um grupo
religioso, por exemplo, pretender que toda a sociedade não veja um certo
filme, porque esse grupo o acha herético ou blasfemo?
Por
parte de um cinéfilo, a resposta é directa: “se não gostam do filme,
não o vejam”. E esta resposta tem a sua lógica: se o religioso não é
obrigado a ver o filme e, assim, a confrontar-se com esse suposto erro
doutrinário, então que deixe os restantes, que não se chocam, verem.
Mas,
porque circulam abaixo-assinados para proibir certos filmes?
Simplesmente porque se pretende que o mundo seja ordenado de forma
cristã. Isto é, mesmo quem não é cristão deve respeitar os ditames dos
grupos cristãos. Sem o saber, todo o mundo é cristão e tem de se
comportar como tal – se não se comporta, terão de ser construídos
instrumentos que o levem ao bom caminho, começando por abaixo-assinados,
terminando não sei em quê.
Passando do simples caricatural filme
ofensivo, passemos para o campo legislativo. Que poder deve ter um
religioso para dizer se um “outro” pode, ou não, fazer uma interrupção
voluntária da gravidez?
Levemos o exemplo pelo viés do quase absurdo:
se, pela lei, uma cidadã puder fazer um aborto, isso implica que as
religiosas são obrigadas a também abortar? Mais uma vez, confunde-se
Direito Civil com a medieval noção de Cristandade: nada pode sair fora
dela e tudo o resto deve ser extirpado.
Em 2009, o então
Presidente Lula terá dito, numa reunião com líderes evangélicos que se
opunham à aprovação de legislação que pune os discursos homofóbicos, que
os evangélicos tinham sido perseguidos e intolerados, mas agora eram
eles os intolerantes e os perseguidores. Com estas posições, o cidadão
comum apenas encontra em certos grupos religiosos um fóssil que nos
faria recuar dois séculos, para antes da Revolução Francesa e do fim da
Inquisição.
Mas a polis não se resume às relações entre
pessoas e identidades religiosas. Teoricamente, o Estado é o lugar da
igualdade, mesmo que o seja apenas como objectivo. No Estado confluem as
liberdades, os direitos e os deveres. As regras do Estado não são mais
que a definição das linhas que definem um são convívio, tendo como
horizonte uma ideia de Bem Comum, uma Casa Comum em que todos habitamos
e, por isso, temos que ser vizinhos.
E essa construção é, acima
de tudo, participativa e é por essa participação que ganha lógica e
legitimidade. Todos participamos com os nossos impostos neste modelo de
gestão; todos usufruímos, mesmo quando apenas criticamos, desse modelo
de organização e de gestão. Mesmo sem realizar crime algum, todos
podemos ser chamados a testemunhar. Mesmo sem recorrer ao sistema
público de ensino, todos os nossos filhos são ensinados e avaliados
mediante conteúdos e regras uniformes.
No fundo, com todas as
falhas, o Estado, como o temos, em Portugal ou no Brasil, é o que
possibilita, por exemplo, que qualquer indivíduo, se for atropelado
gravemente, tenha direito a seguir para uma unidade de cuidados
intensivos, sem que lhe seja questionado nada sobre a sua conta
bancária. É uma garantia que advém por se pertencer à espécie humana e
se viver num espaço que definiu certas regras como inquestionáveis.
Neste
momento, os tempos são conturbados para as instituições e os movimentos
que preconizam uma recusa ao Estado. Não podemos querer que a população
tenha ideias correctas do universo religioso se as religiões as não
transmitirem. Regressando e interpretando no tempo a proposta Bahá’í,
arrisco-me a dizer que o religioso pode vir a matar parte das Religiões.
Não é de estranhar que em muitos inquéritos realizados na Europa
Ocidental, recordando aqui o projecto coordenado por Alfredo Teixeira (Identidades Religiosas na Área Metropolitana de Lisboa,
Fundação Manuel dos Santos, 2018), os “crentes sem religião”, sem
ligação a instituições, mas crentes, são dos grupos que consolidadamente
mais aumentam.
Posto estas considerações, urge reflectir e,
acima de tudo, agir, investigar, destruir as ideias feitas, antes que
elas nos destruam a nós.
* Coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. Embaixador do Parlamento Mundial das Religiões e fundador da European Academy of Religions. É especializado em História das Religiões Antigas (mitologia e literaturas comparadas), mas dedica parte dos seus trabalhos a questões relacionadas com a relação entre o Estado e as religiões. Na área da Ciência das Religiões, é o responsável por diversos projectos de investigação, especialmente na relação entre as Religiões e a escola, assim como no desenvolvimento de uma cultura sobre as religiões como componente de cidadania. É ainda investigador da Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Universidade de Lisboa. É Membro do Conselho Consultivo da Associação de Professores de História. É director da Revista Lusófona de Ciência das Religiões. Recebeu a Medalha de Ouro de Mérito Académico da Un. Lusófona em 2013.
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