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(Des)necessários
Vivemos tempos absurdos, em que o culto da juventude nos faz esquecer que todos nascemos para envelhecer
Li
algures que a boa mãe é aquela que se vai tornando cada vez mais
desnecessária com o passar do tempo. Não porque deixe de ser amada, mas
porque soube dar asas aos filhos para que estes pudessem voar e
tornar-se seres independentes e fortes.
Compreendo perfeitamente a
lógica psicanalítica do raciocínio – eu também quero tornar-me
“desnecessária” – mas confesso que falha um pouco comigo, mulher feita
que continua a ligar à mãe todos os dias numa mal disfarçada ânsia de
colo. E ligo-lhe de manhã, à tarde, à noite, sempre que uma pausa o
permite, já que, entre nós, há sempre tema de conversa, seja ele banal,
seja ele mais profundo ou existencial. A minha mãe, na verdade,
tornou-se cada vez mais necessária com o passar do tempo como se a sua
presença me obrigasse, eticamente, a ser a mulher independente e forte
que sou e que, honra lhe seja feita, não é mais do que o seu próprio
reflexo.
Pensei nisto há minutos, depois de ouvir a notícia de um
ancião que foi abandonado no hospital no dia de natal, após receber
alta. A ambulância levara-o a casa, mas ninguém lhe abrira a porta para o
receber. Ninguém. Teve de voltar para a instituição, onde, num corredor
frio e cinzento, outros tantos idosos o esperavam. Outros iguais a ele,
unidos pela mesma condição – o abandono. Imagino-os, tento imaginá-los
na sua dor. Corpos errantes, olhos perdidos. Almas vazias. É quase
impossível dimensioná-los porque a solidão não tem dimensão. A traição
também não. A deslealdade e a ingratidão muito menos. Penso nisto e a
tristeza invade-me. Se fosse a minha mãe, o meu pai? Se tivesse sido um
dos meus avôs, das minhas avós? Se alguma vez for um dos meus irmãos, o
meu filho, eu? Gelam-me essas possibilidades.
Vivemos tempos
absurdos, em que o culto da juventude nos faz esquecer que todos
nascemos para envelhecer. É a nossa condição. Ninguém, já dizia o poeta,
resiste ao deus atroz que os próprios filhos devora sempre. Os filhos
somos nós e esse deus atroz é Cronos, o Tempo, que em cada dia que passa
nos delapida subtilmente a robustez e a pujança que nos faz hoje donos
do mundo. A alma, essa muitas vezes mantém-se consciente para perceber o
que somos, o que nos tornamos e o que aqueles que deviam cuidar de nós
fizeram quando mais precisávamos deles. Os idosos abandonados sabem do
que falo. Os deixados no corredor do hospital e noutros tantos
corredores da vida. Os de pijama desbotado. Os maltratados física e
psicologicamente. Os explorados. Os violentados por filhos e por netos.
Os “velhos”.
Faltam menos de 48 horas para despedir 2018, um ano
que, confesso, não foi dos melhores. Pelo menos para mim que, ao longo
dos últimos 12 meses, fui sendo confrontada com problemas que, mesmo não
sendo irresolúveis, foram massacrando a minha paciência num verdadeiro
desafio à minha resiliência. Envelheci mais um pouco, de facto. A minha
mãe esteve sempre comigo. O meu filho também. São as testemunhas da
minha história como eu sou a das deles. Porque é o meu dever. Porque é,
sobretudo, a minha vontade. E o será sempre. Até ao fim.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
29/12/18
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