04/01/2019

EKER SOMMER

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(Des)necessários

Vivemos tempos absurdos, em que o culto da juventude nos faz esquecer que todos nascemos para envelhecer

Li algures que a boa mãe é aquela que se vai tornando cada vez mais desnecessária com o passar do tempo. Não porque deixe de ser amada, mas porque soube dar asas aos filhos para que estes pudessem voar e tornar-se seres independentes e fortes.

Compreendo perfeitamente a lógica psicanalítica do raciocínio – eu também quero tornar-me “desnecessária” – mas confesso que falha um pouco comigo, mulher feita que continua a ligar à mãe todos os dias numa mal disfarçada ânsia de colo. E ligo-lhe de manhã, à tarde, à noite, sempre que uma pausa o permite, já que, entre nós, há sempre tema de conversa, seja ele banal, seja ele mais profundo ou existencial. A minha mãe, na verdade, tornou-se cada vez mais necessária com o passar do tempo como se a sua presença me obrigasse, eticamente, a ser a mulher independente e forte que sou e que, honra lhe seja feita, não é mais do que o seu próprio reflexo.

Pensei nisto há minutos, depois de ouvir a notícia de um ancião que foi abandonado no hospital no dia de natal, após receber alta. A ambulância levara-o a casa, mas ninguém lhe abrira a porta para o receber. Ninguém. Teve de voltar para a instituição, onde, num corredor frio e cinzento, outros tantos idosos o esperavam. Outros iguais a ele, unidos pela mesma condição – o abandono. Imagino-os, tento imaginá-los na sua dor. Corpos errantes, olhos perdidos. Almas vazias. É quase impossível dimensioná-los porque a solidão não tem dimensão. A traição também não. A deslealdade e a ingratidão muito menos. Penso nisto e a tristeza invade-me. Se fosse a minha mãe, o meu pai? Se tivesse sido um dos meus avôs, das minhas avós? Se alguma vez for um dos meus irmãos, o meu filho, eu? Gelam-me essas possibilidades.

Vivemos tempos absurdos, em que o culto da juventude nos faz esquecer que todos nascemos para envelhecer. É a nossa condição. Ninguém, já dizia o poeta, resiste ao deus atroz que os próprios filhos devora sempre. Os filhos somos nós e esse deus atroz é Cronos, o Tempo, que em cada dia que passa nos delapida subtilmente a robustez e a pujança que nos faz hoje donos do mundo. A alma, essa muitas vezes mantém-se consciente para perceber o que somos, o que nos tornamos e o que aqueles que deviam cuidar de nós fizeram quando mais precisávamos deles. Os idosos abandonados sabem do que falo. Os deixados no corredor do hospital e noutros tantos corredores da vida. Os de pijama desbotado. Os maltratados física e psicologicamente. Os explorados. Os violentados por filhos e por netos. Os “velhos”.

Faltam menos de 48 horas para despedir 2018, um ano que, confesso, não foi dos melhores. Pelo menos para mim que, ao longo dos últimos 12 meses, fui sendo confrontada com problemas que, mesmo não sendo irresolúveis, foram massacrando a minha paciência num verdadeiro desafio à minha resiliência. Envelheci mais um pouco, de facto. A minha mãe esteve sempre comigo. O meu filho também. São as testemunhas da minha história como eu sou a das deles. Porque é o meu dever. Porque é, sobretudo, a minha vontade. E o será sempre. Até ao fim.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
29/12/18

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