23/10/2018

TERESA TAVARES

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Chama-me pelo meu nome

A propósito do Prémio Nobel da Paz atribuído este ano a Nadia Murad (ativista dos direitos humanos e vítima de tortura e escravidão sexual pelo estado islâmico) e Denis Mukwege (médico ginecologista que já operou mais de 40 000 mulheres vítimas de violência sexual no Congo e um dos fundadores da City of Joy) pelo seu trabalho na luta para acabar com a violência sexual como arma de guerra, dei comigo a rever um documentário impressionante que todos devíamos ver : City of Joy.

Realizado por Madeleine Gavin e disponível na Netflix, é uma extraordinária viagem à comunidade fundada em 2011 por Denis Mukwege, Christine Schuler Deschryver e Eve Ensler no leste do Congo para receber e tratar mulheres vítimas de crimes sexuais, naquele que é atualmente considerado por muitos como ‘um dos piores sítios do mundo para uma mulher viver’.

No Congo, as mulheres são usadas como armas de guerra e, sendo quase impossível determinar a magnitude do flagelo, um estudo publicado no American Journal of Public Health estimou que aproximadamente 48 mulheres são violadas por hora.

Na City of Joy, as mulheres não só são recebidas e tratadas como, juntas, aprendem a transformar a sua dor em poder – para depois voltarem às suas comunidades e ajudarem a reconstruí-las. É impressionante assistir aos depoimentos destas mulheres, vítimas de atrocidades, e ainda mais tocante é perceber a sua força para transformar a tragédia em alegria e motivação.

Numa altura em que vivemos sem dúvida uma revolução feminina, com movimentos como o #metoo a obrigarem a sociedade a repensar a forma como viu e tratou as mulheres ao longo de séculos, é importante perceber que tudo isto faz parte da mesma revolução. E que a revolução é urgente e há muito aguardada – foram séculos de história escrita no masculino.
Há pouco mais de 100 anos não podíamos votar em Portugal. Na Arábia Saudita, só este ano é que as mulheres passaram a poder conduzir e ainda não podem sair do país nem abrir uma conta bancária sem autorização do seu ‘guardião homem’.

Por tudo isto, espanta-me sempre que ouço – e ouço muitas vezes – que ‘também não é preciso exagerar, as coisas até estão equilibradas’ ou ‘tenham calma, agora não vão ser extremistas’.
Honestamente, da parte das mulheres, não tenho visto grandes extremismos, vejo-nos, isso sim, a tomar posições e a assumi-las em nome próprio. A questionar a ordem estabelecida e a falar sem medo e sem tabus. Só isso.

A questão é que passámos séculos a olhar para os homens como protagonistas – e agora estamos todos a estranhar, inclusive nós próprias.

Os nomes das mulheres ficaram esquecidos e ainda nos custa dizê-los em primeiro lugar. Basta lembrar-nos de um caso recente nos EUA : alguém se lembra do nome da mulher que acusou o juiz Kavanaugh de abuso sexual, expondo-se diante do mundo inteiro? Chama-se Christine Blasey Ford. E fez muito por todas nós.

Temos um longo caminho pela frente mas quero acreditar que a história nos reconhecerá, finalmente, o devido protagonismo.

Após séculos no masculino, o futuro escreve-se também no feminino. Com as nossas mãos.

* Actriz

IN "DELAS"
OUTUBRO/2018






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