02/09/2018

ISABEL STILWELL

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 Direito a não ser pai?

Quando se estabeleceu que um dador não tem os direitos e os deveres de um pai, embora dê a conhecer a sua identidade, abriu-se a porta para que um homem possa reivindicar o mesmo estatuto quando uma gravidez aconteceu sem, ou mesmo contra, a sua vontade?

Em 2012, uma tese de mestrado acendeu a polémica.

Jorge Martins Ribeiro, no âmbito da formação em Direitos Humanos na Universidade do Minho, defendeu que a partir do momento em que a lei portuguesa permite que as mulheres podem escolher abortar, ou não abortar, impunha-se que também autorizasse os homens a recusar a paternidade. Criticava "a justeza da imposição de uma parentalidade não desejada, assente na política do facto consumado, de imposição da paternidade a partir da verdade biológica, o que, por vezes, acabará por não servir as pessoas envolvidas, muito menos a criança".

Sendo assim, argumentava, "o pai deve poder recusar os efeitos jurídicos daquela paternidade, com base nos mesmos argumentos que vigoram na possibilidade que é dada à mulher de abortar, sejam razões de ordem económica, profissional ou simplesmente porque não quiseram ser pais".

Um ano depois, um homem obrigado pelo Tribunal de Cascais a assumir as responsabilidades parentais de um filho utilizou estes argumentos para apelar ao Supremo e depois ao Tribunal Constitucional que, no entanto, não lhe deram razão. Para o TC justificava-se o tratamento diferente do pai e da mãe. O comum dos mortais compreende a lógica da argumentação, mesmo que possa não concordar com a premissa inicial, ou seja, que o direito da mãe sobrepõe-se ao do feto, que só depois de nascer se torna sujeito de plenos direitos. A partir de então, é a criança que tem direito aos pais, e não o inverso, o que legitima que, mesmo contra a vontade do pai ou da mãe, o Ministério Público procure descobrir quem é o progenitor em falta, impondo-lhe que reconheça, e assuma senão o seu cuidado direto, pelo menos o seu sustento.

Contudo havia uma estranha exceção - as crianças que resultavam de doação de esperma ou ovócitos. Esses bebés continuavam, para todos os efeitos, sem a possibilidade de conhecerem a identidade dos seus progenitores biológicos. Recorreu-se de novo ao Tribunal Constitucional que já em 2018 pôs fim à doação anónima, mas criou um regime novo para os dadores: os filhos têm acesso à sua identidade, mas os dadores não possuem quaisquer direitos ou deveres para com eles. Estava a pensar nisto tudo, quando me ocorreu: se é assim, porque é que um homem que consiga provar que objetivamente foi utilizado como dador ao vivo e a cores não pode reivindicar o mesmo estatuto? Ou mesmo algum que apareça a dizer que fez um acordo explícito nesse sentido com a vizinha do lado? Porque, basicamente, pelo menos aos olhos de um leigo, parece ter-se estabelecido a exata diferença que Jorge Martins Ribeiro pretendia quando pedia que o pai biológico pudesse recusar efeitos jurídicos da paternidade. Ou seja, assumir-se progenitor, mas nunca pai.

Bem diz o juiz conselheiro Laborinho Lúcio que o melhor que pode acontecer a uma criança é ser adotada pelos seus pais biológicos. Quando não é assim, todas as soluções são más. Mas é preciso assumir que se tornam ainda piores quando comprovadamente as mulheres fazem uso premeditado da biologia para realizar um desejo que é só delas.

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
28/08/18

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