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IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
01/08/18
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Parar para pensar
e depois continuar
Foi na segunda metade dos anos 70 e eu era aluno no Liceu Pedro
Nunes, em Lisboa. A Revolução do 25 de Abril tinha acabado de acontecer e
o liceu por esses anos era mais um sítio de agitação política do que um
local onde havia aulas e estudo.
Mas em 1975-76 eu tinha 13 ou 14
anos e o que eu mais gostava era de jogar futebol com os amigos.
Aproveitava todo o tempo livre, nos intervalos das aulas e sobretudo
quando não havia aulas, porque os professores não tinham sido colocados,
tinham sido substituídos, ou saneados ou o que quer que fosse. Ou
simplesmente porque as aulas tinham sido interrompidas para uma muito
importante e urgente sessão de esclarecimento ou comício em frente à
cantina sobre a situação política e os acontecimentos gravíssimos que se
estavam a passar no país e exigiam a mobilização de todos.
Para
nós, alunos mais novos, era não só muito importante e urgente como muito
bom e mesmo ótimo, porque acabávamos sempre a jogar futebol enquanto os
colegas mais velhos tratavam do destino do país.
Por vezes, havia
sessões de pancadaria, sobretudo entre militantes do MRPP e do PCP que,
ao que parecia, partilhavam ideias diferentes sobre o futuro do país.
Nessas alturas, era habitual haver batalha campal e arremesso de
cadeiras e pedras e nós tínhamos de interromper o jogo de futebol,
saltar o muro e fugir pelo Cemitério dos Ingleses para a rua.
Mas
no dia seguinte, logo de manhã, ao abrir do portão da escola, lá
estávamos, prontos para o futebol e para uma ou outra aula que pudesse
acabar por se confirmar.
Os dias, pequenos charcos, sucediam-se
mais pedrada menos pedrada, mais bola menos bola, como citações
despropositadas de poemas em crónica de jornal.
Num desses dias,
lembro-me claramente, o meu amigo Rui, um dos mais inteligentes amigos
que eu tinha, veio ter comigo e disse-me:
- "Passas o dia a jogar à
bola. Sabes o que se está a passar? Não participas em nada, não te
interessas. Um dia destes vais votar... Como é que vais votar, em quem?"
E apontando para o livro que tinha debaixo do braço:
- "Já leste isto?"
O livro era O Capital,
de Karl Marx. Claro que eu sabia o que era. Estávamos em 76. Mas, de
facto, não só não o tinha lido como nem sequer o tinha folheado.
- "Ainda não li."
E ele:
- "Não tens consciência política. Depois não te admires que o mundo esteja como está."
E ali me deixou, suado, com a bola na mão, os outros à espera de que o jogo continuasse e eu a pensar:
- "Ele tem razão."
Não
posso garantir que tenham sido estas as frases, mas estas seriam frases
que eu poderia escolher se, quem sabe, mais tarde contasse esta
história.
Fui ler O Capital.
O meu tio Mário era comunista. Devia ter e emprestava-me. Tinha e emprestou.
Estive
vários dias às voltas com o livro a ver se me concentrava. O mesmo
tinha acontecido uns anos antes com a Bíblia, nos tempos do catecismo.
Não foi fácil. Percebi, numa espécie de ironia avant la lettre, que O Capital
ia dar muito trabalho. Para dificultar mais, na estante, mesmo ali ao
lado, estavam as bandas desenhadas e os livros de aventuras, o
escapismo. E lá fora a alienação do futebol.
Isto durou uns dias,
uma eternidade. Bastante menos do que o catecismo e a Bíblia, é certo.
Mas dessa vez fui obrigado, não tive escolha.
Com o Marx, ao fim de uma semana, decidi: "Isto ainda não é para mim. Tenho tempo."
Curiosamente, ter deixado a leitura da Bíblia não me fez sentir culpa nenhuma, ter deixado O Capital nem sequer a meio, durante um tempo fez-me sentir culpado.
O
que estava em causa não era aquele livro em particular. Foi o que
aquele momento representou para mim. Porventura, a primeira vez em que
tive consciência de que tinha uma responsabilidade política no mundo em
que estava a viver. Seria ainda, nessa idade, uma consciência prematura
dessa responsabilidade, mas agora, à distância, percebo que foi um
momento de perda de inocência.
Ao longo da vida todos temos estes momentos, pequenas epifanias do
quotidiano, deflagradas por um inesperado qualquer. Pode ser um
pensamento, uma ideia, uma clarividência súbita, um eureka; causado por um documentário que vemos, uma reportagem, um filme; uma simples frase de um talkshow da tarde ou uma frase que alguém nos diz por acaso; uma conversa com um amigo no pátio do liceu.
Podem
ter que ver com a ameaça ambiental, a desigualdade, a injustiça, a dor
dos outros. Podem dar-nos angústia, mal-estar, preocupação pelo mundo.
Podem fazer-nos perguntar como podemos ser felizes depois de sabermos o
que se está a passar. Podem levar-nos a agir ou a militar numa causa, a
procurar mudar o que está mal.
Ou, pelo contrário, pode ser um
verso, uma música, um fim de tarde, um saco de papel a esvoaçar ao
vento, uma fotografia, alguém que entra numa sala e o mundo para, num
momento de beleza, paixão, suspensão...
E depois tudo continua.
Mesmo que seja impossível que as coisas voltem a ser as mesmas depois
desse momento. Mesmo que seja impossível continuar. Tudo continua.
A
vida é um rali, cheio de ziguezagues e solavancos, em que por vezes
chocamos contra estes momentos definidores. Os que nos suspendem numa
incredulidade mágica e os que nos atiram contra uma realidade trágica.
Com o tempo ou a distância todos podem ficar quase cómicos.
Nunca
mais revi o meu amigo Rui. Gostava de o voltar a ver para lhe dizer que
fiquei a pensar no que ele me disse. Que acabei por ler O Capital. Mais ou menos (li uma versão que saiu em banda desenhada).
Gostava
de lhe dizer que foi importante para mim ele ter-me dito aquilo. Mais
do que tudo, gostava de o desafiar para voltarmos a dar uns toques na
bola.
(Os Dias, Pequenos Charcos é o título de um livro de poemas de Joaquim Manuel Magalhães)
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01/08/18
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