Conheci-a
por puro acaso. Não me procurou profissionalmente. Não foi preciso
conhecê-la muito para perceber que vivia muito bem consigo e com os seus
próximos. Mas teve de lutar, mais com ela própria do que com os outros.
O caminho que fez não foi fácil. Já um bocado para lá dos 60 anos,
cabelo curto, grisalho — desde há muito que se recusa a pintá-lo —,
conheci-a na praia, a sair do mar, prancha na mão.
Já um bocado
para lá dos 60 anos, cabelo curto, grisalho — desde há muito que se
recusa a pintá-lo —, conheci-a na praia, a sair do mar, prancha na mão.
Era
difícil não olhar para ela, bonita, alta, com um sorriso simpático.
Destacava-se facilmente no meio dos miúdos e menos miúdos que àquela
hora estavam a entrar e a sair das ondas. Passados uns dias, meti
conversa na esplanada.
“Desculpe o meu preconceito, nos tempos
que correm não é muito correto, mas venho aqui há muito tempo e não me
lembro de ver uma senhora da sua idade a fazer surf.”
Desatou a
rir-se. “Até que enfim que alguém me diz alguma coisa. Sabe, muita gente
olha para mim, mas nunca me tinham feito nenhuma pergunta.”
Devo ter cara de psiquiatra, começou a falar dela como se me conhecesse desde sempre.
“Trabalhei
numa companhia de seguros toda a minha vida. Fiz o percurso do costume,
tirei um curso, casei, tive filhos, já tenho um neto. Não tinha tempo
para nada, sabe como é, a correr de casa para o trabalho. Tive um marido
de quem gostei muito, morreu no ano passado, tenho muitas saudades
dele. Quando fiquei viúva e, pouco tempo depois, me vi livre do
trabalho, comecei a vir até aqui com o meu neto mais novo. Ele estava a
aprender a fazer surf e eu ficava encantada a ver os seus progressos nas
ondas. Até comecei a falar de offshore, inshore, swelling. O meu neto,
cheio de vergonha, dizia: ‘Ó avó, não tem idade para dizer essas
coisas.’ Hesitei muito, tinha vergonha, mas enchi-me de coragem e fui
falar com o professor. Claro que podia ter aulas, muito educadamente
sugeriu que talvez fosse melhor serem individuais. Demorei umas semanas a
conseguir pôr-me em pé na prancha, hoje já faço umas ondas, mas
sobretudo sinto-me muito bem aqui. Deixei de viver em piloto automático,
sempre a fazer todos os dias a mesma coisa. Claro que por vezes me
perguntava se o que tinha era uma vida, mas gosto muito da minha família
e dos meus amigos e ia vivendo...”
Passaram uns dias, voltei lá.
Estava sentada na esplanada a conversar com um homem, cabelo e olhos
claros. Chamou-me, perguntou-me se podia falar em inglês. Sentei-me,
apresentou-me o amigo.
“Também o conheci aqui, é gestor de fundos
financeiros, mas está farto. Começámos a falar de seguros de
capitalização e agora somos namorados. Vamos montar um bar de praia. Só
me falta a coragem para conversar com os meus filhos, já deve ter
percebido que ele é muito mais novo do que eu...”
Já tinha
percebido, mas, antes do alemão, eu também tinha percebido que o charme
dela não tem idade. O resto são pormenores. As rugas e o cabelo grisalho
desaparecem com o seu olhar doce.
Despediu-se de mim. Iam fazer uma viagem de caravana. Quase ao ouvido, disse-me em português:
“Nem imagina a pena que tenho em não viver isto com o meu marido”.
16/08/18
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