02/08/2018

ANTÓNIO CLUNY

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Marielle Franco 
e a luta contra a corrupção, 
para além da crónica brutal 
da sua morte anunciada

A luta contra as desigualdades não deve olvidar as políticas anticorrupção

No número de março/abril da “New Left Review” vem publicada a versão em inglês de um dos últimos ensaios (2017) de Marielle Franco, a vereadora do Rio de Janeiro eleita por uma lista conjunta do PSOL e do PCB, denominado “Mudar é Possível”.

Marielle foi assassinada em 14 de março de 2018, a tiro, e a publicação deste ensaio e da nota que o antecede tiveram como objetivo honrar a sua memória.

Como muitos outros militantes da esquerda brasileira - designadamente Plínio de Arruda Sampaio, membro do Ministério Público, fundador do PT e, depois, também do PSOL -, Marielle Franco iniciou a sua consciencialização e atividade política no seio da Ação Católica.

No artigo a que me refiro, intitulado naquela revista norte-americana “After the Take-over”, Marielle faz uma observação interessante sobre a chamada luta contra a corrupção no Brasil e o significado político que poderia encerrar.

Diz ela, a dado passo, que “as classes dominantes conseguiram a espalhar a ideia de que o problema mais importante que o Brasil tem de enfrentar é o da corrupção e não o da desigualdade”.
Marielle desenvolve depois um pouco mais esta opinião, defendendo que quanto mais esta ideia ganha forma no imaginário popular, mais a generalidade da população vai rejeitando a sua participação na política e vai identificando os beneficiários da corrupção maioritariamente com os políticos.

De um certo ponto de vista - e, porventura, os últimos acontecimentos no Brasil corroboram tal ideia -, esta análise pode parecer correta.

Contudo, é importante não olvidar também que, de acordo com muitos e rigorosos estudos, a corrupção, especialmente em países menos desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, constitui um dos fatores que mais contribuem para acentuar as desigualdades económicas e sociais.

A luta contra as desigualdades não pode, pois - e não deve mesmo -, olvidar as políticas anticorrupção.

A questão que importa antes colocar é, assim, a de saber em que medida o enfoque da opinião pública apenas numa perspetiva puramente judicial dos fenómenos da corrupção poderá contribuir para uma certa indiferenciação e neutralização da discussão política em torno das suas causas e da responsabilidade real dos seus verdadeiros fautores.

Sendo verdade que a corrupção envolve atores de diferentes espetros e campos políticos, tal constatação não deve, contudo, obstar - antes pelo contrário - a que se analisem e revelem as causas reais desse fenómeno que, hoje, para o bem e para o mal, domina os noticiários e as redes sociais.

Ora, tal discussão tem de ser eminentemente política - deve mesmo ir ao cerne das opções políticas - e, portanto, de pouco serve dizer, como muitas vezes ouvimos, “isso é uma questão da justiça, e à justiça o que é da justiça e à política o que é da política”.

Sendo verdadeiras, tais afirmações devem relevar da necessidade de preservar a separação dos poderes e não devem, em caso algum, indicar a desistência de analisar as causas políticas, económicas e sociais da corrupção.

A verdade é que a corrupção de que hoje se fala - em países como o Brasil, mas não só - não se restringe a casos isolados e apenas da iniciativa de um ou outro responsável mais venal.
Este tipo isolado de corrupção existe e sempre existiu em todo o lado.

A frequência e a extensão dos factos agora noticiados parecem indicar, contudo, que a corrupção que alastra em algumas sociedades constitui, isso sim, um fenómeno sistémico que parece congénito ao seu modelo político, económico e social.

Ora, de tal discussão - e independentemente do destino dos casos judiciais - não pode a política fugir.

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31/08718

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