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Marielle Franco
e a luta contra a corrupção,
para além da crónica brutal
da sua morte anunciada
A luta contra as desigualdades não deve olvidar as políticas anticorrupção
No número de março/abril da “New Left Review” vem
publicada a versão em inglês de um dos últimos ensaios (2017) de
Marielle Franco, a vereadora do Rio de Janeiro eleita por uma lista
conjunta do PSOL e do PCB, denominado “Mudar é Possível”.
Marielle foi assassinada em 14 de março de 2018, a tiro, e a
publicação deste ensaio e da nota que o antecede tiveram como objetivo
honrar a sua memória.
Como muitos outros militantes da esquerda brasileira - designadamente
Plínio de Arruda Sampaio, membro do Ministério Público, fundador do PT
e, depois, também do PSOL -, Marielle Franco iniciou a sua
consciencialização e atividade política no seio da Ação Católica.
No artigo a que me refiro, intitulado naquela revista norte-americana
“After the Take-over”, Marielle faz uma observação interessante sobre a
chamada luta contra a corrupção no Brasil e o significado político que
poderia encerrar.
Diz ela, a dado passo, que “as classes dominantes conseguiram a
espalhar a ideia de que o problema mais importante que o Brasil tem de
enfrentar é o da corrupção e não o da desigualdade”.
Marielle desenvolve depois um pouco mais esta opinião, defendendo que
quanto mais esta ideia ganha forma no imaginário popular, mais a
generalidade da população vai rejeitando a sua participação na política e
vai identificando os beneficiários da corrupção maioritariamente com os
políticos.
De um certo ponto de vista - e, porventura, os últimos acontecimentos
no Brasil corroboram tal ideia -, esta análise pode parecer correta.
Contudo, é importante não olvidar também que, de acordo com muitos e
rigorosos estudos, a corrupção, especialmente em países menos
desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, constitui um dos fatores que
mais contribuem para acentuar as desigualdades económicas e sociais.
A luta contra as desigualdades não pode, pois - e não deve mesmo -, olvidar as políticas anticorrupção.
A questão que importa antes colocar é, assim, a de saber em que
medida o enfoque da opinião pública apenas numa perspetiva puramente
judicial dos fenómenos da corrupção poderá contribuir para uma certa
indiferenciação e neutralização da discussão política em torno das suas
causas e da responsabilidade real dos seus verdadeiros fautores.
Sendo verdade que a corrupção envolve atores de diferentes espetros e
campos políticos, tal constatação não deve, contudo, obstar - antes
pelo contrário - a que se analisem e revelem as causas reais desse
fenómeno que, hoje, para o bem e para o mal, domina os noticiários e as
redes sociais.
Ora, tal discussão tem de ser eminentemente política - deve mesmo ir
ao cerne das opções políticas - e, portanto, de pouco serve dizer, como
muitas vezes ouvimos, “isso é uma questão da justiça, e à justiça o que é
da justiça e à política o que é da política”.
Sendo verdadeiras, tais afirmações devem relevar da necessidade de
preservar a separação dos poderes e não devem, em caso algum, indicar a
desistência de analisar as causas políticas, económicas e sociais da
corrupção.
A verdade é que a corrupção de que hoje se fala - em países como o
Brasil, mas não só - não se restringe a casos isolados e apenas da
iniciativa de um ou outro responsável mais venal.
Este tipo isolado de corrupção existe e sempre existiu em todo o lado.
A frequência e a extensão dos factos agora noticiados parecem
indicar, contudo, que a corrupção que alastra em algumas sociedades
constitui, isso sim, um fenómeno sistémico que parece congénito ao seu
modelo político, económico e social.
Ora, de tal discussão - e independentemente do destino dos casos judiciais - não pode a política fugir.
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