05/08/2018

ANA RITA GUERRA

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Quem tramou o Facebook

É uma ameaça existencial no longo prazo, apesar de hoje parecer impossível que um mamute deste tamanho venha a dar com as presas no chão

Três milhões de europeus apagaram as suas contas no Facebook e um milhão de americanos fizeram o mesmo durante os últimos três meses. Fosse pelo escândalo de privacidade, fosse pelo cansaço com a tormenta dos memes e do apelo à indignação constante, estes utilizadores fizeram o que muita gente tem vontade de fazer mas acaba por ir deixando andar. Quantas vezes ponderou apagar a conta e livrar-se das chatices que arranja no Facebook? Até quando vai arrastar isso?

A crise da rede social, que já fez correr tanta tinta, não vai desaparecer com um par de actos de contrição do CEO e a suspensão de algumas contas problemáticas. É uma ameaça existencial no longo prazo, apesar de hoje parecer impossível que um mamute deste tamanho venha a dar com as presas no chão.

Pouco depois de conhecido o caso da Cambridge Analytica, a Thomson Reuters fez uma sondagem nos Estados Unidos para perceber até que ponto os utilizadores tinham mudado a sua forma de ver a rede social. Na altura, 1% já tinha apagado a sua conta e 18% admitiu estar a usar menos o Facebook, entre os quais 47% por causa de receios de privacidade.

Foram números que não assustaram muita gente. Aliás, a apresentação de resultados do primeiro trimestre gerou suspiros de alívio no mercado, porque o desempenho da empresa até foi melhor que o esperado. O pior, como descobrimos na semana passada, estava para vir.

Não é só a descoberta de que o Facebook piora a saúde mental dos utilizadores quando o consumo é passivo e obsessivo. Nem que a empresa partilhou dados confidenciais de forma descarada com programadores terceiros de quem nunca ouvimos falar. Que monitoriza a actividade dos utilizadores mesmo quando estes saem da rede social. Que se deixou seduzir pelo dinheiro russo e não vetou a compra de anúncios políticos encharcados em falsidades nas eleições de 2016.

É tudo isto e a sensação de que não lhe podemos escapar, tal como um vício pernicioso. O ex-alcóolico que sabe que não pode tocar numa gota de álcool para não descambar. O ex-fumador que não pode fumar um cigarro de vez em quando, sob pena de regressar à adicção a toda a brida. O Facebook é assim, difícil de usar com parcimónia: ou uma pessoa se embrenha num buraco sem fundo de vídeos e comentários escabrosos nas publicações de amigos, ou tem de suspender a conta para resistir à tentação. O meio termo existe, mas é raro; aquela pessoa que lê uma mensagem passados três dias porque “não costuma ir ao Facebook” está longe da norma.

Todos estes factores que agora ameaçam o crescimento do Facebook não existem por acidente, foram feitos à medida. Mark Zuckerberg fez tudo o que estava ao seu alcance para tornar a plataforma omnipresente, indispensável, metida em todos os cantos da vida de uma pessoa. Ao mesmo tempo, optou por não tomar as medidas necessárias para garantir a sua integridade, e é isso que está agora a rebentar na sua cara.

No entanto, a culpa não é só dele. Este mercado financeiro que comanda o mundo tem uma obsessão perigosa com o crescimento exponencial a cada três meses, saindo a correr e aos gritos de cada vez que isso não acontece. O desempenho do Facebook no trimestre foi bom, mas o mercado queria mais – por isso levou um tombo histórico em bolsa, perdendo um valor recorde de 150 mil milhões de dólares numa única sessão. As ações continuam a descer porque os investidores continuam cépticos, depois de Zuckerberg e companhia terem avisado que crescimento e receitas irão abrandar nos próximos tempos.

É uma fase dolorosa. Eles sabem que têm de dar vários passos atrás se quiserem continuar a ter caminho. Investir em segurança, deixar de ganhar dinheiro com toda e qualquer informação dos utilizadores, dar maior controlo às pessoas e menor aos anunciantes e empresas.

 Não é que monetizar uma plataforma grátis seja mau: afinal, ninguém anda aqui a trabalhar para aquecer. Mas a voracidade com que os mercados exigem mais e melhores resultados todos os trimestres quase nunca é compatível com negócios que respeitam a integridade dos dados pessoais e o benefício dos utilizadores. Isso é tanto mais importante quanto se fala de algo que mexe com o tecido social de uma forma tão decisiva; não estamos aqui a vender fidget spinners nem gelados de maionese. Zuckerberg parece só agora ter entendido essa responsabilidade, apesar dos seus investidores ainda não terem chegado lá.

IN "DINHEIRO VIVO"
31/07/18

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