.
IN "A BOLA"
09/07/18
.
Olimpismo:
O Novo Ópio dos Políticos
O
filósofo francês Raymond Aron publicou em 1955 o livro “O Ópio dos
Intelectuais” onde critica o conformismo da esquerda política
relativamente ao totalitarismo que, então, se vivia nos regimes
marxistas. E ao afirmar que o marxismo era o ópio dos intelectuais
pretendeu, por analogia, parafrasear a célebre metáfora de Karl Marx que
proclama a religião como sendo “o ópio do povo”.
Passado o
tempo das grandes narrativas, os dirigentes políticos por esse mundo
fora, órfãos de ideologias que lhes sustentem o discurso perante massas
de eleitores ávidos de espetáculo político, seja ele qual for, estão a
virar-se para o desporto em geral e o futebol em particular pelo que,
agora, passaram a vibrar com os grandes espetáculos desportivos e a,
religiosamente, rejubilar perante os resultados que lhes podem valorizar
a imagem, facilitar-lhes as eleições e a proporcionar-lhes o poder tão
desejado.
O que está a acontecer é que, enquanto droga
psicotrópica de caráter religioso, o marxismo alienava os intelectuais
da realidade terrena ao ponto de lhes entorpecer os critérios de valor
relativos aos direitos humanos, agora, o espetáculo desportivo, ao
instituir o culto pagão do endeusamento dos atletas, da idolatria
clubista ou, ainda pior, da veneração chauvinista da bandeira nacional,
entorpeça a visão da realidade social aos dirigentes políticos e
desportivos que passam a viver na ilusão de omnipotência sustentada numa
“moral de rebanho” que está a destruir a democracia nos mais diversos
países. Neste sentido, num atentado tanto à inteligência quanto à
memória histórica e na mais profunda ignorância, há dirigentes políticos
e desportivos que procuram elevar o desporto à categoria de “desígnio
nacional” sem perceberem, minimamente, o sentido protofascista do
alcance dos seus desejos!
Perante o que se está a passar à
escala planetária, seria de todo o interesse que o desporto nacional
fosse submetido a uma avaliação séria e competente acerca do que em
matéria de educação, cultura e desenvolvimento deve ser precavido.
Porque, não é possível que se continue, impunemente, a “despejar” somas
consideráveis de dinheiro em várias organizações desportivas sem que os
efeitos dessa aplicação sejam devidamente considerados no quadro de uma
visão estratégica para o desporto nacional e, ainda menos, sem que a
utilização dessas verbas seja, devidamente controlada e avaliada na sua
relação custo / benefício. Por exemplo, não se percebe como é possível
que, por um lado, as verbas destinadas ao Desporto Escolar, uma
estrutura pública a funcionar abaixo da linha de água, não estejam
atempadamente garantidas ao ponto de ter havido crianças e jovens que
acabaram por não participar nos últimos Campeonatos Escolares (Record,
2018-06-27) e, por outro lado, o mesmo Ministério possa financiar uma
entidade privada com uma verba de 600 mil euros a fim de 233 atletas
participarem nos Jogos do Mediterrâneo que decorreram de 22 de Junho a 1
de Julho de 2018 em Tarragona sem que os objetivos da Missão estivessem
perfeitamente esclarecidos relativamente à sua integração no quadro do
processo de desenvolvimento do desporto nacional.
Para
além de um certo desejo turístico-emocional de carácter desportivo de
alguns dirigentes, não se conhece qualquer análise que sustente a
necessidade do desporto nacional participar nos Jogos do Mediterrâneo.
Apesar disso, o Ministro da Educação e o Secretário de Estado da
Juventude e Desporto não deixaram de estar presentes. Contudo, segundo o
Observador.pt (2018-07-01) o presidente do Comité Olímpico de Portugal
(COP) não ficou satisfeito com a presença de só dois membros do Governo.
Ele queria mais. E, do alto do seu pedestal, manifestou um olímpico
“desconforto” pela “completa marginalização” dada aos atletas presentes
em Tarragona, por parte de “membros da hierarquia do Estado”. Quer dizer
que, sua excelência o presidente do COP, pelos vistos, não se sentiu
confortado só com a presença de dois membros do Governo, uma vez que,
certamente, esperava que se tivessem deslocado a Tarragona o
Primeiro-ministro, o Presidente da Assembleia da República e,
possivelmente, até o próprio Presidente da República!
Entretanto,
independentemente do deslumbramento do presidente do COP relativamente
ao lugar que ocupa, é bom que se diga que, embora a Missão portuguesa
tenha ganho nos Jogos do Mediterrâneo 24 medalhas, o que é facto é que,
se tratou de uma prova de segunda ou terceira categoria onde, apesar das
parangonas relativas ao sucesso desportivo anunciadas acriticamente
pela comunicação social, a referida Missão acabou por ficar classificada
em 13º lugar que significa o primeiro lugar do grupo dos últimos, num
total de 26 países.
Sem qualquer desmerecimento para com
os atletas na medida em que todos eles foram selecionados por mérito
próprio e por quem de direito e, como o presidente do COP garantiu,
aqueles que faltaram à chamada justificaram com “razões de natureza
clínica”, a análise que fazemos da Missão portuguesa aos Jogos do
Mediterrâneo não tem nada a ver com os atletas de per si, tem, tão só, a
ver com a racionalidade das escolhas que, em matéria de políticas
públicas no quadro global do processo de desenvolvimento do desporto
nacional, foram realizadas.
Nesta perspetiva, a
participação portuguesa que conquistou 24 lugares de pódio esteve longe
de corresponder ao êxito proclamado pelo presidente do COP na medida em
que, na classificação por países, Portugal ficou atrás de países como a
Eslovénia, Chipre, Tunísia, Croácia, Marrocos, Sérvia e, até, da Turquia
e da Grécia. Itália, que ficou em primeiro lugar, conquistou 156
medalhas; Espanha ficou em 2º lugar com 122 medalha; a Turquia em 3º
lugar com 95 medalhas. A Grécia ficou em sexto lugar com 47 medalhas,
quer dizer, praticamente, o dobro das medalhas portuguesas. A triste
realidade da participação da Missão Olímpica portuguesa nos Jogos do
Mediterrâneo (2018) é que, infelizmente, se bem repararmos no quadro das
medalhas, os países que ficaram atrás de Portugal foram, por exemplo, a
Albânia, San Marino, o Líbano ou o Montenegro que, mesmo assim, também
conquistaram lugares de pódio. Daqui se pode aferir a reduzida
importância dos Jogos do Mediterrâneo.
Para uma efetiva
avaliação da Missão portuguesa acresce considerar que, segundo o
presidente do COP, os Jogos do Mediterrâneo foram considerados “como uma
espécie de ‘berço’ para atletas, modalidades, treinadores e mesmo para o
desporto nacional” (Record, 2018-07-01). Assim sendo, salvo alguns
resultados de mérito obtido por atletas jovens perfeitamente
identificáveis, deve ser levado em conta que, pelo menos, 10 dos 24
pódios conseguidos foram-no através de atletas olímpicos ou por atletas
consagrados como os da equipa equestre, do atletismo (Estafeta 4x100m
masculina) e da seleção masculina de Ténis de Mesa. Ora, esta situação
nada tem a ver com o berçário do presidente do COP.
Perante esta
triste realidade e tendo em atenção que o Olimpismo, à escala mundial,
está a ser transformado no novo ópio dos políticos só nos podemos
regozijar pelo facto das mais altas figuras do Estado não se terem
deslocado a Tarragona na medida em que não iam fazer grande figura. Mas,
também não se compreende a presença em Tarragona tanto do Secretário de
Estado do Desporto como do Ministro da Educação. O que é que lá foram
fazer? De amas-secas já que se tratava de uma espécie de “berço
competitivo”? A presença do presidente do Instituto do Desporto e
Juventude com um ou dois técnicos a fim de avaliarem a maneira como os
recursos públicos estavam a ser despendidos tinha sido mais do que
suficiente e poupado o erário público.
Por isso, as
palavras do presidente do COP quando “manifestou ‘desconforto’ pela
‘completa marginalização’ dada aos atletas que participaram nos Jogos do
Mediterrâneo, em Tarragona, Espanha, por parte de ‘membros da
hierarquia do Estado’” só podem ser entendidas no quadro de excesso de
vaidade institucional e no quadro da confrangedora falta de cultura
olímpica que está a tomar conta do desporto. Quanto à vanidade,
“presunção e água benta cada qual toma a que quer” todavia, mesmo
admitindo que estamos numa lógica em que “o olimpismo é o novo ópio dos
políticos” trata-se de um ridículo paroquialismo institucional lamentar a
ausência de altas figuras do Estado num evento desportivo de segunda ou
terceira categoria onde a missão portuguesa ficou no grupo dos últimos,
embora em primeiro lugar. Relativamente ao espírito olímpico recordamos
o pensamento sempre atual de Pierre de Coubertin quando afirmava que se
opunha a que os atletas que ganhassem notoriedade fossem colocados ao
serviço de quaisquer ideologias, castas ou oligarquias. Em conformidade,
cunhou a seguinte máxima: “Athletae proprium est se ipsum noscere,
ducere et vincre”. Quer dizer, “é dever e essência do atleta
conhecer-se, conduzir-se e superar-se”. Porque, o aprender a
conhecer-se, o ser capaz de se conduzir e o pretender superar-se,
liberta o atleta da exclusiva dimensão biológica e experimentalista do
desporto e abre-o à busca da superação e transcendência nas quais a
vaidade terrena pela eventual presença de dignitários políticos se
desvanece perante os desígnios morais que se encontram no extraordinário
campo de afirmação pessoal proporcionado pelo rendimento desportivo.
Quer dizer, num sadio Espírito Olímpico, os atletas estavam em Tarragona
por eles próprios e não em nome de qualquer individualidade ou
estrutura burocrática ou, sequer, em representação dos altos dignitários
da nação. É esta a independência que o Movimento Olímpico deve
preservar. Porque, qualquer CON só cumpre a sua verdadeira missão
quando, através do desporto, forma cidadãos conscientes das verdadeiras
virtualidades pessoais e sociais da prática desportiva e não pequenos
ídolos com pés de barro que, infelizmente, às vezes, vemos
desmoronarem-se no mundo do desporto a partir do momento em que deixam
de usufruir dos favores dos momentos de glória pelos quais passaram.
Neste sentido, tenho para mim que a dignificação social do desporto não
passa, certamente, por transformar os atletas numa espécie de
saltimbancos de feiras, os treinadores em lanistas de circo e os Comités
Olímpicos Nacionais em órgãos de logística dos eventos desportivos ao
serviço de políticos ou de empresas em busca de visibilidade. A presença
de figuras de Estado em Tarragona se pecou foi por excesso e não por
defeito. Por isso, ao contrário do presidente do COP, não lamento a
ausência das mais altas figuras de Estado em Tarragona, antes pelo
contrário, considero que a sua ausência foi uma atitude bem sadia que
nos evitou ter de ver uma triste repetição daquilo que se passou no
Campeonato do Mundo de Futebol (2018).
Em Tarragona, a
ausência que verdadeiramente se fez notar e ficou por explicar foi a de
Rosa Mota. Porque, sendo ela, vice presidente do COP e a atleta olímpica
de maior notoriedade nacional estranha-se que, numa lógica de Efeito de
Ídolo, não tenha estado presente nos Jogos do Mediterrâneo. Mas
estranha-se ainda mais que, desde há cerca de um ano a esta parte, Rosa
Mota tenha deixado de ser uma presença constante tanto nos eventos do
COP bem como nas imagens do portal da instituição. Ora bem, em
Tarragona, Rosa Mota só podia acrescentar inteligência competitiva à
Missão tanto mais que o evento se tratava de uma espécie de “berço da
competição desportiva”. Por isso, sobre a estranha ausência de Rosa Mota
o País fica à espera de uma explicação por parte do presidente do COP.
Infelizmente,
à falha das grandes narrativas que já não conseguem mobilizar as
massas, hoje, vemos muitos políticos, numa despudorada conquista de
popularidade, a agarrarem-se ao fenómeno desportivo de onde resulta o
Olimpismo como o último reduto da sua salvação. Lamento dizê-lo mas, com
a conivência de muitos dirigentes desportivos, o Olimpismo, à
semelhança daquilo que se passava nos jogos de circo da Roma antiga,
está, à escala mundial, a ser transformado no novo ópio dos políticos.
* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana
IN "A BOLA"
09/07/18
.
Sem comentários:
Enviar um comentário