30/07/2018

ÂNGELA MARQUES

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A falta que a Internet faz

"A meio da conversa, e ainda que a partir de diferentes latitudes, atropelámo-nos para dizer o mesmo: aqueles três dias estavam a saber a seis. "É que quase não tenho wi-fi", ouvi. "Eu praticamente não tenho rede", respondi."

A casa tinha um quintal do tipo "eu desisto", uma sala com tecto de telhas mais velhas do que o sol e dois quartos com cara de casulo. Quando as seis da tarde de domingo chegaram a casa à boleia de um passeio pela costa, o galo (também havia um galo) cantou: era hora da sesta. Com as tradições alentejanas debaixo de olho, decidi que ia dormir até entediar o corpo. Entediado, ele então haveria de cutucar o estômago para o jantar. Recolhi.

Já tricotava lã de mil carneiros quando o telemóvel tocou. Tocou alto, tocou forte, tocou escondido mas tocou certo - eram notícias de longe. Enquanto fazia o caminho entre a cama e o sofá onde o diabo tinha ficado esquecido, pensei que já mal me lembrava daquele toque. Naqueles dias, o que eu mais tinha exigido do meu telemóvel tinha sido que tirasse boas fotografias. Cumprindo, ele tornara-se invisível.

Lancei-me para o apanhar antes que se calasse, escolhendo ignorar que todas as chamadas podem ser devolvidas. Atendi a tempo (e com isso nada ganhei, se descontarmos a vitória num desafio auto-imposto). Do lado de lá, as notícias vinham como vêm quando são boas, aos pulos, e a conversa despertou-me. Eram histórias de dias fáceis e de noites sem fim nem frio nem futuro. Eram histórias de um refém da felicidade a viver o síndrome de Estocolmo com tudo aquilo a que tinha direito.

A meio da conversa, e ainda que a partir de diferentes latitudes, atropelámo-nos para dizer o mesmo: aqueles três dias estavam a saber a seis. "É que quase não tenho wi-fi", ouvi. "Eu praticamente não tenho rede", respondi. Então concordámos em concordar: estávamos a precisar de desligar. Em paz, desligámos.

Quando nos voltarmos a ver - no meio da guerra, na nossa relação Bluetooth -, já teremos toda a rede do mundo. Claro, o tempo passará a correr - que fazer? Para brindarmos ao tempo em que três dias eram seis, vou mostrar-lhe este texto. Para isso só tenho de descobrir se este hotel em que me encontro agora - sem quintal, telhas, casulos ou galos - ao menos tem wi-fi.

IN "SÁBADO"
27/07718

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