O austríaco
que perdeu as raízes
Era uma vez um homem que morreu de desgosto. Em rigor, a morte
aconteceu na sequência de uma pneumonia, resultante em larga medida de
um alcoolismo voraz. Mas o rigor vai buscar dados a situações demasiado
concretas e muitas vezes esconde o essencial. No caso de Joseph Roth,
austríaco que perdeu as raízes, basta ler qualquer livro por ele escrito
para perceber que o álcool era uma maneira de escapar à dureza das
perdas sucessivas.
Foi um jornalista de grande prestígio e muito bem pago, no Neue Berliner Zeitung e no Frankfurter Zeitung que o pôs a viajar pelo mundo. Antes, tinha assinado como Roth Vermelho no jornal Vorwärts, do SPD alemão, o mesmo onde escreveram Engels e Trotsky.
Quando
escrevi que era austríaco, estava a remeter para o tempo em que nasceu,
em 1894, quando ainda existia o Império Austro-Húngaro. Roth escreveu
em 1932 uma obra-prima - A Marcha de Radetzky - publicada em
Portugal há três meses na Nova Vega. É uma saga familiar que acompanha
três gerações de homens do mundo de Francisco José até ao colapso do
império.
Desta obra diz o amigo Stefan Zweig, como ele judeu
errante, que "era um livro de despedida, melancólico e profético, como
sempre são os livros dos verdadeiros poetas". Num texto deste escritor,
usado na edição portuguesa à maneira de prefácio, lê-se: "No mais
pequeno dos seus atos, nas suas afirmações, nos seus escritos, sentia-se
uma bondade irresistível e inesquecível, a grandiosa tendência russa
para se prodigalizar sem medida."
Não posso aqui explicar a Marcha de Radetzky,
a música marcial que Johann Strauss compôs em homenagem ao vencedor da
batalha de Custoza. A escolha deste tema, que vai surgindo ao longo do
livro, tem múltiplos significados, por nascer da primeira revolta dos
"italianos", isto é, da cidade de Milão, apoiada pelo rei da Sardenha,
contra a ocupação austríaca do império. Tornou-se depois uma espécie de
hino da Áustria e é tocada todos os anos no concerto de Ano Novo da
Orquestra Filarmónica de Viena. Como explicar? Não posso usar aqui a
partitura, com notas a subir e a descer nas cinco linhas da pauta, e se
escrever tararan tararan tararantantan não dá para perceber, acho eu.
As
três gerações dos Trotta seguem o declínio fatal do império, um tempo
vivido por Roth. Em 1916, ele foi voluntariamente combater na frente na
Grande Guerra, e isso deu-lhe um conhecimento profundo do mundo militar.
Perdeu a nacionalidade de austro-húngaro, nascido na cidade de Lviv,
hoje Ucrânia. Voltou a perdê-la, de outra forma, quando viu nascer o
nazismo e se radicou em Paris.
Perdeu cedo a mulher, para a
esquizofrenia. Joseph já tinha morrido quando ela foi levada para
Auschwitz onde foi assassinada. O escritor não chegou a ver a Segunda
Guerra, pois morreu a alguns meses do início formal do conflito, mas
pressentiu o que ia acontecer e sofreu profundamente. Foi um sofrimento
pessoal, porque os livros foram queimados e o seu nome riscado, mas o
que mais o transtornou, segundo Zweig, "foi ver o princípio do Mal, o
ódio, a violência, a mentira, ver o Anticristo, segundo as suas
palavras, triunfar no mundo".
Ainda não li o livro todo, porque
vou ter pena de arrumá-lo na estante. Tenho onze páginas para saborear.
Sei que até ao fim vou encontrar uma impiedosa ironia neste retrato
psicológico de um império que já deixou de existir mas ainda assobia
para o lado, divertindo-se em casinos improvisados, festas e valsas,
jogos militares caóticos, protocolos imperiais, enquanto as revoltas, as
greves e os nacionalismos sobem de tom.
Talvez seja sempre assim,
a irresponsabilidade festiva antes do colapso. E a melancolia
amargurada dos que veem no presente os sinais do futuro.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
19/07/18
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