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IN "A BOLA"
03/06/18
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A Olímpica Neovirgindade
Um
País sedado com as disputas da bola foi surpreendido com os
inacreditáveis acontecimentos do passado dia 15 de Maio quando um grupo
de cerca de 50 adeptos (energúmenos) encapuzados invadiu a Academia do
Sporting em Alcochete, tendo agredido jogadores e técnicos e provocado
terror e destruição. De uma maneira geral, as mais altas
individualidades do País, de acordo com a praxe, apressaram-se a
manifestar um veemente repúdio para com aqueles atos de vandalismo
criminoso, bem como a demostrar uma comovente solidariedade para com os
jogadores e técnicos do clube. Ficou-lhes bem. E, como já é habitual,
sempre que acontecem problemas no futebol, terminaram os discursos
recordando o êxito que foi o Euro 2004 de futebol e o ofuscante título
europeu conquistado em 2016 que, como se sabe, em matéria de propaganda
política do regime, foram efemérides com impacto semelhante à acontecida
em 11 de Março de 1945 quando Oliveira Salazar, no intervalo de um
desafio de futebol Portugal x Espanha, mandou lançar, de uma avioneta,
sobre o Estádio Nacional um panfleto intitulado “… o que nós queremos é
futebol”. E, como “o que nós queremos é futebol”, o Sr.
Primeiro-ministro, certamente inspirado na douta recomendação sugerida
pelo presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP) no discurso que
proferiu na Conferência sobre Violência no Desporto que aconteceu a 3 de
Abril na Assembleia da República, apressou-se a anunciar o remédio para
todos os males do desporto português através da constituição de uma
Alta Autoridade para o Combate à Violência no Desporto. E, assim, veio à
luz do dia mais uma máxima do tempo de Oliveira Salazar que nos diz que
quando não se quer ou não se é capaz de resolver um problema cria-se
uma comissão que, nestes tempos de pós-modernidade, passou a designar-se
por “alta autoridade” que, aos ouvidos do basbaque, soa muito melhor.
O
que de mais significativo resulta do vergonhoso caso acontecido na
Academia de Alcochete é que a oligarquia político-desportiva nacional
percebeu que é necessário que alguma coisa mude para que tudo possa
continuar na mesma. Não é assim há dezenas de anos? Nestes termos, para
se cumprir a máxima de Lampedusa, um bode expiatório vinha mesmo a
calhar a fim de salvaguardar consciências, entreter as massas e
penitenciar os pecados do futebol porque, o mundo das finanças que manda
nos clubes percebeu que valores mais altos se começaram a levantar. E
Bruno de Carvalho que, há muito, já se vinha a pôr a jeito, acabou por
ficar ali mesmo à mão de semear. A partir de então, foi um “ver se t’
avias”. E, incrédulos, passámos a assistir a uma procissão de neovirgens
que, até aos acontecimentos de Alcochete, nunca tinham visto nada,
ouvido nada, denunciado nada, olimpicamente escandalizadas e sem a
mínima vergonha a, publicamente, rasgarem as vestes da sua indignação
relativamente a um dirigente que, à semelhança do que, tristemente,
acontece aos treinadores de futebol, de um dia para o outro, passou de
bestial a besta. Todavia, não têm sido poucos aqueles que,
insistentemente e de há vários anos a esta parte, têm vindo a alertar
para o facto de a Situação Desportiva nacional se encontrar numa
perfeita lástima. A título de exemplo recordo só duas crónicas de Vítor
Serpa publicadas no jornal que dirige: “A política desportiva do Governo
é… bola” (2017-09-13) e “O desporto pelas ruas da amargura”
(2017/09/16). Na realidade, não podia ser de outra maneira. Porque, a
relação que a generalidade dos políticos, atualmente, tem com o desporto
é do tipo infantojuvenil.
Entre as neovirgens que mais me
emocionaram destaco aquela que, a 21 de Junho de 1975 (Sábado), como me
recordaram Fonseca e Costa, José Carvalho e João Marreiros, à frente de
um grupo de energúmenos maoistas, invadiu violentamente a pista de
atletismo do Estádio Nacional impedindo o normal prosseguimento do
Campeonato de Lisboa de Atletismo. Ao tempo, Moniz Pereira, numa crónica
que intitulou de “Sábado Negro…” (cf. A Bola, 1975-06-23) lamentou
profundamente aquele acontecimento. No dia seguinte, o campeonato teve
de prosseguir na pista sintética do Estádio da Luz. Portanto, o hábito
de, violentamente, invadir instalações desportivas já vem dos primórdios
do 25 de Abril protagonizado por gente para quem a democracia não
tinha, não tem e jamais terá qualquer significado. E os valores do
desporto muito menos. Pelo que, hoje, é profundamente ridículo andarem
por aí, de lágrimas nos olhos, a botar discurso contra a violência no
desporto.
Não sejamos ingénuos. Os dirigentes desportivos não
nasceram de geração espontânea. Eles, salvo as devidas exceções, são o
produto acabado de um sistema a funcionar em “roda livre” que, numa
lógica economicista, sem princípios e sem valores, tomou conta do
desporto. Eles estão é preocupados com o “dress code” da cosmética
política em prejuízo de quaisquer Políticas Públicas integradas e
consistentes que, realmente, promovam o Nível Desportivo do País.
Parafraseando Vinícius de Moraes, eles foram levados ao “alto da
construção” pelos detentores do poder real e, numa carência
profundamente atávica, não resistiram ao usufruto da satisfação de todas
as mordomias que lhes eram oferecidas. Mas quando todas aquelas
regalias lhes sobem à cabeça e entram em confronto com os deuses do
dinheiro vivo que, realmente, mandam no desporto nacional, caem em
desgraça e são condenados ao ostracismo porque o espetáculo tem de
continuar. Hoje, Bruno de Carvalho, por pecados próprios, sabe bem o que
isto significa.
A oligarquia que manda no desporto para além
de ser a causa de tudo o que se está a passar é, também, a consequência
de uma cultura desportiva em que a generalidade dos portugueses, das
mais diversas classes sociais, vive completamente alienada pelo ambiente
da clubite esquizofrénica que anima a generalidade dos espetáculos
desportivos. A este propósito, José Miguel Júdice escrevia no “Eco.pt”
(2018-05-2018): “Um grande político e ainda maior advogado (a quem
chamaram “o príncipe da democracia”) não corou de vergonha quando disse
em relação a uma situação de alegada corrupção, ‘se o dinheiro é para a
Académica, não é crime’”. Ora, se deduzirmos quem foi o “príncipe da
democracia” que proferiu tal sentença não nos podemos admirar pelo
estado lastimoso a que o desporto chegou em Portugal. Quer se goste quer
não, esta é a verdadeira realidade. Trata-se de uma cultura de
permissividade e condescendência, espécie de “prisão psíquica”
clubística que, profusamente, vemos nas televisões, nos jornais e na
net. Ela foi, há mais de dez anos, bem exemplificada por Leonor Pinhão
numa crónica publicada no jornal A Bola (2006-09-15). Contava a
jornalista que, nos anos oitenta, viveu uma situação em que o chefe de
redação do jornal (na melhor das intenções e à margem de qualquer
interesse pessoal) recusou autorizar uma reportagem sobre um gravíssimo
caso de corrupção com o exclusivo propósito de proteger a dignidade e o
bom nome do futebol.
Esta cultura que passa por proteger o bom
nome da “família do desporto”, tem aberto as portas a muitos
“passarões” que, hoje, armados em neovirgens, em alternativa a uma forte
educação desportiva e consequente cultura desportiva, desejam colocar o
desporto a “ferro e fogo” com mais leis, mais controlo, mais polícias,
mais acusações, mais tribunais, mais julgamentos e mais condenações.
Trata-se de uma perspetiva fascistoide, da qual muitos dirigentes ainda
não se libertaram, que caracterizava a organização do desporto antes do
25 de Abril. Ontem, tal como hoje, suas excelências gostam das alegrias
da bola mas não gostam de ser incomodadas. A violência não se combate
com mais violência. No desporto, a violência combate-se,
fundamentalmente, com mais educação e mais cultura. Por isso, em
alternativa ao discurso da coerção judiciária, de acordo com a Carta
Olímpica, é a defesa da educação e da cultura no processo de
desenvolvimento do desporto que esperamos ouvir nos discursos dos
dirigentes desportivos.
O problema do desporto nacional é que
as neovirgens que, agora, lançam lancinantes gritos de indignação não
são nem melhores nem piores do que a generalidade dos dirigentes
desportivos que desejam ostracizar. Elas são, tão só, uma das
consequências do estado de hipocrisia política a que o País chegou.
Especialistas em “portas giratórias” têm ocupado as mais diversas
situações político-administrativas, muitas vezes em regime de
acumulação, sem que, verdadeiramente, alguma vez, se tenham interessado
por resolver o que quer que seja a não ser questões relativas aos seus
próprios interesses. No seu oportunismo, elas são tanto as causas como
as consequências do lastimoso estado em que o desporto se encontra.
Por
isso, seria extraordinário que a resolução dos problemas de um clube
estivesse só na demissão de um dirigente. Se assim fosse, era só correr
com ele. Infelizmente, regra geral, os problemas estão tanto nas
lideranças vigentes quanto naqueles que as desejam substituir. São
problemas sistémicos e endémicos que ultrapassam as próprias
organizações já que têm sobretudo a ver com a desorganização e falta de
orientação política, do ensino ao alto rendimento, do Sistema
Desportivo.
Entretanto, com Bruno ou sem Bruno, como é
habitual, o País está prestes a voltar à natural letargia da cultura de
rebanho que o caracteriza. Quer dizer, vai entrar em modo seleção
nacional pelo que os portugueses já estão a ser objeto de mais uma
lavagem ao cérebro através da promoção da seleção nacional de futebol e
do Campeonato Mundial da FIFA (2018) que decorrerá na Rússia de 14 de
Junho a 15 de Julho.
E, ainda bem porque, de facto, aquilo que os portugueses mais querem é bola. E, como arguiu Vítor Serpa, o Governo dá-lhes.
* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana
IN "A BOLA"
03/06/18
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