.
IN "PÚBLICO"
06/05/18
.
Sócrates e o preço
da cegueira política
Do jornalismo de sarjeta passámos à política de sarjeta, onde impera a lei da selva, com cada um a sacudir a água do capote e a clamar "salve-se quem puder"?
José Sócrates demitiu-se do PS depois de o caso Manuel Pinho,
verdadeira gota de água a transbordar o copo, ter precipitado o
afastamento de ministros do actual Governo e dirigentes do partido em
relação ao ex-primeiro ministro. Saindo também em defesa de Pinho,
Sócrates considerou "ter chegado o momento de pôr fim a este embaraço mútuo". Ora, a sua desfiliação partidária leva-me a
Em 2004, estando Santana Lopes à frente de um Governo com naufrágio
anunciado e José Sócrates conspirando afanosamente nos bastidores para
tomar de assalto o PS, decidi apresentar a minha demissão de militante
do partido de que era então deputado. Porquê? Exactamente por causa
disso – ou seja, do socratismo triunfante que se avizinhava com a
complacência da maioria dos dirigentes e militantes do partido depois da
absurda renúncia de Ferro Rodrigues (que cedeu de bandeja a Sócrates a
liderança do PS).
Confesso que nunca percebi muito bem o que tinha
levado pessoas que até então eu prezava a renderem-se com tanta
facilidade e falta de sentido crítico a um homem que revelaria, como
primeiro-ministro, "uma sobranceria, uma soberba autoritária face às
opiniões divergentes e uma incapacidade de antecipar a terrível crise em
que o país mergulharia e de que ele, com a sua cegueira da
infalibilidade, foi largamente responsável". Esta passagem de um livro
de memórias que fiz com a jornalista Isabel Lucas e foi publicado em
2013 parece-me hoje de uma actualidade reveladora face ao que agora
sabemos ou presumimos, até pelas piores razões.
Como foi possível que pessoas como António Costa – que eu considerava o
quadro do PS mais bem preparado para suceder a Ferro Rodrigues mas me
afiançara, em tom aparentemente definitivo, que nunca seria
secretário-geral do PS e primeiro-ministro… –, Augusto Santos Silva ou
Vieira da Silva tivessem posto uma venda nos olhos e seguido cegamente
José Sócrates? Mas foi isso o que simplesmente viria a verificar-se,
atingindo mesmo requintes chocantes, como sucedeu a Santos Silva, pois
"acabaria em ministro de propaganda do socratismo, revelando uma vocação
trauliteira de que eu nunca suspeitara; achava-o até um dos deputados
mais bem preparados e brilhantes do PS". É o que recordo noutra passagem
do livro citado, onde tento também uma explicação singela para estes
casos: "Fui constatando que, em política, as pessoas se reconvertem e
mudam de camisa com uma facilidade impressionante". À luz destes tristes
ensinamentos é inevitável concluir aquilo que sabemos desde César e
Brutus: os mais fervorosos adeptos de um líder político incontestado são
os que aparecem primeiro a afiar a faca quando ele cai em desgraça.
.
Para quem não se considera particularmente perspicaz – os que me
conhecem melhor apontam, pelo contrário, a minha ingenuidade e boa-fé
quase como características genéticas – é sempre surpreendente constatar
como pode ir tão longe o cinismo dos comportamentos, até ao ponto de
provocarem a náusea. Ora, é isso que me inspira algum cepticismo sobre a
capacidade de redenção política e recuperação da ética republicana
(essa expressão mágica que está em moda nos dias que correm para
enfrentar a ameaça do populismo).
Sim, como é possível ter havido
tamanha cegueira face a José Sócrates durante tanto tempo, cegueira que
apenas se tornou insustentável depois do silêncio ensurdecedor de Manuel Pinho
e de os interrogatórios judiciais a Sócrates terem caído na praça
pública? Quem triunfa, afinal, são os justiceiros que defendem a
legitimidade das encenações televisivas "coladas" à investigação dos
magistrados? Do jornalismo de sarjeta passámos à política de sarjeta,
onde impera a lei da selva, com cada um a sacudir a água do capote e a
clamar "salve-se quem puder"? Confesso que ainda ando à procura de
respostas satisfatórias.
IN "PÚBLICO"
06/05/18
.
Sem comentários:
Enviar um comentário