04/05/2018

PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS

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 Que futuro 
para a democracia?

1. Muito dificilmente se encontraria alguém que melhor pudesse encarnar a negação sistemática de todos os valores que nos últimos 70 anos serviram de justificação para a alegada superioridade moral do Ocidente - e do seu principal instrumento económico e militar: os Estados Unidos da América - do que o próprio Donald Trump, atual presidente! A denúncia dos acordos de comércio livre no Pacífico e no Atlântico, o protecionismo, a imposição de barreiras alfandegárias aos seus principais parceiros comerciais, a construção de um muro na fronteira com o México, a discriminação religiosa de visitantes estrangeiros, os insultos aos povos que acusa de parasitas, a solidariedade com os neofascistas europeus, a banalização do racismo e da xenofobia, o desprezo pela condição feminina, a irresponsabilidade ambiental... não é possível, enfim, uma enumeração exaustiva, mesmo renunciando à contabilização dos assomos de fanfarronice doentia, aldrabices e flagrantes contradições!

2. A revolução tecnológica veio acelerar dramaticamente o fenómeno da globalização. A inteligência artificial, a robótica, as armas de controlo remoto, a Internet e as redes sociais subverteram profundamente o quadro de referencias físicas e culturais que condicionavam o funcionamento das sociedades contemporâneas, desde as atividades económicas até às engenharias financeiras, aos sistemas políticos e aos processos de formação da opinião pública, afetando a própria representação do conceito normativo de dignidade humana. A liberdade cedeu terreno à segurança. Em nome das ameaças terroristas e de todos os perigos indefiníveis amplificados pela globalização, viola-se o direito internacional e o princípio da não ingerência nos assuntos internos dos outros estados e lançam-se impunemente ataques aéreos sem autorização das Nações Unidas sobre qualquer alvo útil para a encenação de uma urgente vitória militar, tal como contava George Orwell, em 1949, na novela profética, "Nineteen Eighty Four". Nesta coreografia caótica, os direitos tendem a ser considerados como um empecilho e, naturalmente, a segurança tende a tornar-se em pretexto para tudo, das políticas de austeridade à flexibilização das leis do trabalho, da vigilância omnipresente às violações do segredo de justiça, dos fracassos eleitorais à pirataria informática.

3. A globalização e as novas tecnologias precipitaram transformações políticas de que foram pioneiros destacados, pelos anos oitenta do século passado, Ronald Reagan, Margareth Thatcher e o seu fiel discípulo, Tony Blair, este último amparado pelas doutrinas da chamada terceira via. As mudanças propagaram-se a todo o planeta ainda que com resultados diversos. Na Europa Ocidental, a Esquerda social-democrata fundiu-se no novo centro político - ou arco da governação - com a Direita mais conservadora, abdicando gradualmente de procurar alternativas que respondessem às aflições dos eleitores confrontados com a deslocalização das empresas, o desemprego, a quebra dos salários, o corte de benefícios sociais, a ausência de expectativas. As ilusões prometidas pelo fim da Guerra Fria, em 1989, rapidamente se desvaneceram com a proliferação de violentos conflitos armados. Em consequência, continuou a crescer o desinteresse dos cidadãos e a abstenção dos eleitores, a extrema-direita chegou ao poder e, aproveitando as tecnologias de comunicação, o populismo foi tomando o lugar do debate cívico, da ponderação e do confronto programático indispensáveis à subsistência das democracias representativas. As tentativas de judicialização da política e de criminalização dos dissidentes são perigosos sinais de alarme.

4. É neste contexto estranho e ameaçador - entre o medo do regresso à barbárie e o estímulo para um novo salto civilizacional - que a Esquerda se terá de reinventar. A crise de representação política é global e apenas se cura com mais participação democrática: no Estado, nas escolas e nas empresas, na administração local e nas regiões, no país e na Europa.

* DEPUTADO E 
PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
03/05/18

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