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Crescentes desigualdades
sociais e económicas.
A causa não é o neolítico
Importa salientar que as desigualdades económicas também se estão a agravar em outros países com economias avançadas, nas quais os jovens da geração do Milénio são os mais afetados. Tudo indica que o conjunto de países com economias avançadas está a ter maior dificuldade em gerar excedentes e usa os que gera de uma forma que agrava as desigualdades de riqueza, convencido erroneamente que poderá assim contribuir para resolver o problema que se mantém sem solução nas últimas décadas. Nos países com economias emergentes e nos restantes a situação é mais diversificada e complexa mas de um modo geral todos partilham uma maior capacidade potencial de gerar excedentes do que os países com economias avançadas, devido a razões demográficas e ao menor desenvolvimento das suas economias. É provável que tal capacidade vá decrescer tal como aconteceu nos países com economias avançadas. Globalmente e a médio e longo prazo a capacidade de gerar excedentes irá decrescer em todos os países embora de forma diferenciada devido à degradação e destruição do ambiente, à sobre-exploração de recursos naturais e às alterações climáticas. É pois previsível termos no futuro um mundo onde a prática, inventada no neolítico, de gerar de forma sistemática e contínua excedentes tão valiosos e abundantes quanto possível, para depois exercitarmos a nossa capacidade ancestral de cometer todos os imagináveis comportamentos extremos, poderá tornar-se cada vez mais difícil ou mesmo inviável. Esta situação, caso se concretize, corresponderia a conhecer os limites do modelo de grande sucesso que permitiu aumentar indefinidamente, pelo menos até ao presente, a prosperidade económica, o bem-estar e a qualidade de vida de grande parte da humanidade.
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É previsível termos no futuro um mundo onde a prática de gerar de forma sistemática e contínua excedentes tão valiosos e abundantes quanto possível poderá tornar-se cada vez mais difícil ou mesmo inviável.
Recentemente vários autores, motivados por razões diversas, têm vindo
a salientar que a revolução agrícola está na origem de grande parte da
nossa problemática atual porque esta resulta do longo e irreversível
caminho percorrido desde que deixámos de ser caçadores-recolectores
(Demoule, 2017; Scott, 2017). Temos certamente ainda muito a aprender
sobre as circunstâncias e as causas das revoluções agrícolas que se
deram de forma independente em várias regiões do mundo mas é evidente
que tiveram aspetos positivos e negativos. A motivação inicial resultou
da descoberta notável de que era possível domesticar algumas plantas e
animais e que o seu uso persistente e continuado cria vantagens
reprodutivas às populações e gera uma segurança alimentar que permite
suportar uma maior densidade demográfica comparativamente à dos
caçadores-recolectores. O novo sistema está muito longe da perfeição.
Por vezes, a produção agrícola colapsa devido a secas, cheias e pragas e
instala-se a fome e a miséria. Por vezes, as comunidades agrícolas são
invadidas, atacadas, violadas e saqueadas por invasores armados. Viver
em comunidades sedentárias, algumas vezes superlotadas, próximo dos
animais domésticos deu origem a novas doenças e epidemias letais. Embora
a segurança alimentar fosse em geral maior a dieta alimentar era
provavelmente menos nutritiva do que a dos caçadores-recolectores, pelo
menos para uma parte da população. Porém, no outro prato da balança
encontramos a promessa de produções agrícolas abundantes que permitem
saciar todos os apetites e festejar a afluência, a atração e a
experiência de estilos de vida cada vez mais diversificados e luxuosos,
oportunidades crescentes de promoção social, de diversificação
profissional, de enriquecimento, de ascensão ao poder, de dominar os
seus semelhantes, de vitórias militares, de conquistas territoriais e
saques lucrativos. Apenas se não conhecermos bem o homem em geral e nós
próprios em particular, ou se deliberadamente ignorarmos esses
conhecimentos, poderemos culpabilizar a revolução agrícola das
problemáticas e das insustentabilidades que encontramos na atualidade. A
revolução agrícola representou o início de um processo civilizacional
ao qual a esmagadora maioria das populações do mundo aderiram livremente
sem hesitações ao longo de milhares de anos e que consideram ter
trazido maior prosperidade, bem-estar e qualidade de vida. Contudo, este
processo civilizacional trouxe um aumento exponencial da população
humana (embora recentemente o seu crescimento esteja a abrandar), a
militarização das sociedades, as guerras e as grandes batalhas, uma
crescente estratificação social, crises sociais e económicas profundas, a
degradação e destruição do ambiente, a sobre-exploração de recursos
naturais e as alterações climáticas. A razão destes aspetos negativos
não se encontra na revolução agrícola, mas no rumo que as
características essenciais do comportamento individual e social humano
imprimiram ao processo civilizacional. Afirmar que a “revolução agrícola
foi uma das maiores fraudes na história da humanidade” (Harari, 2017)
equivale a dizer que a fraude somos nós próprios, o que não contribui
para entender o nosso passado e procurar resolver os problemas atuais e
futuros.
A partir da revolução agrícola a humanidade habituou-se a ter
excedentes de produção de bens e disponibilização de serviços e soube
aproveitá-los para aumentar de forma direta e imediata o poder de uma
parte da população e depois aumentar indiretamente, lentamente e de
forma diferenciada a prosperidade económica, o bem-estar e a qualidade
de vida do conjunto da população humana. Este programa nem sempre correu
bem e houve abusos e desvios com consequências dramáticas mas em média
prevaleceu de forma positiva ao longo de cerca de 100 séculos. O modo
como se faz a distribuição na sociedade do poder económico e político
gerado pelos excedentes tem variado ao longo da história. Porém, os
excedentes são vitais para a continuidade do funcionamento do sistema.
Sem o aumento contínuo da produtividade que gera os excedentes o sistema
tende para desequilíbrios perigosos.
Ao nível mais básico das
pulsões, desejos, temores e ambições o motor deste sistema é o facto de a
proliferação dos excedentes tornar possível a prática de uma variedade
praticamente ilimitada de comportamentos extremos, cujo sentido para
quem os pratica e para a sociedade vai desde o muito positivo ao muito
negativo, tais como filantropias, generosidades, prodigalidades,
intemperanças, despesismos, exuberâncias, extravagâncias, luxos extremos
e de um modo geral excessos. A nossa atração pelos comportamentos
extremos faz parte da nossa inalienável herança biológica. Podemos
refrear os impulsos que nos levam a praticá-los mas não conseguimos
reprimi-los completamente. Vamos ter que conviver com eles até ao final
do tempo do Homo sapiens. Os comportamentos individuais e coletivos
extremos são em grande parte responsáveis por nos terem deixado o legado
civilizacional e cultural de que hoje beneficiamos. É o caso, por
exemplo, das obras realizadas pelas grandes civilizações, como as
pirâmides do Egipto, a Muralha da China, os templos Maia, as catedrais
na Europa da Idade Média e a profusão de obras de arte da Renascença. É o
caso das grandes viagens dos descobrimentos e das explorações através
de todo o sistema Terra e do espaço exterior. A nível individual
encontramos exemplos notáveis de filantropia, cooperação, ajuda,
proteção e amor dos mais pobres e desprotegidos, dedicação plena e
incansável à criação filosófica, científica, tecnológica e artística, à
causa da medicina e da saúde pública, à causa da produção de bens e
serviços e das respetivas empresas, à causa pública e à governação. No
outro extremo dos comportamentos extremos encontramos os assassínios, a
tortura, as perseguições, os saques, o terrorismo, o lançamento
sistemático de bombas sobre populações, os assassínios seletivos
dirigidos por drones, os genocídios, o holocausto, o lançamento
de bombas atómicas sobre cidades, e ainda, de forma mais generalizada e
comum em todo o mundo, os mais diversos tipos de roubos e de
corrupção.
A evolução recente da distribuição da riqueza nas economias avançadas
dá-nos um exemplo atual de um comportamento coletivo extremo
surpreendente. O caso dos EUA é paradigmático e foi recentemente
estudado por Piketty, Saez e Zucman (Piketty, 2016). Quando se compara a
distribuição dos aumentos anuais dos rendimentos reais e líquidos em
função do rendimento para dois períodos de tempo consecutivos de 34
anos, um que termina em 1980 e outro que termina em 2014, surgem duas
curvas muito diferentes. No período de 1946-1980 os maiores aumentos
situam-se na classe média e nos rendimentos mais baixos. O valor do
aumento do rendimento da classe média é cerca de 2% o que representa uma
duplicação do rendimento real líquido em cerca de 34 anos. No período
de 1980-2014 a curva inverte-se e agora os aumentos mais baixos
situam-se nos rendimentos mais baixos e os aumentos mais elevados na
parte mais rica da população. A classe média, em lugar de aumentos reais
e líquidos de 2%, no período mais recente teve aumentos de 1%. No
período mais recente os aumentos de 2% só se encontram no percentil dos
4% mais ricos. No extremo do gráfico correspondente aos rendimentos mais
elevados a curva dos aumentos apresenta um máximo muito pronunciado que
atinge aumentos reais e líquidos anuais superiores a 6%. Tal significa
que os mais ricos e apenas os mais ricos receberam aumentos
significativos do rendimento nas últimas décadas. As desigualdades de
riqueza estão pois a agravar-se de forma muito significativa e isso tem
consequências sociais e políticas. O aumento de riqueza do 1% dos mais
ricos é claramente um excesso surpreendente para muitos, natural para
outros, e para o qual existem certamente razões muito fortes. São
provavelmente múltiplas e variadas mas a causa mais próxima pode
resumir-se na afirmação de que nas últimas três a quatro décadas a
receita gerada pela economia fluiu mais para os lucros do que para os
salários, comparativamente ao período que se seguiu à Segunda Guerra
Mundial. Outro aspeto importante é a economia americana estar a crescer,
mas a taxa de crescimento nas últimas décadas tem sido, em média,
bastante inferior à média do período do pós-guerra. Importa ainda
salientar que enquanto o excedente comercial externo médio do período
1946-1980 representava 0,5% do PIB dos EUA, no período de 1980-2014
houve um défice comercial externo de 2,7% do PIB (Piketty, 2016). Nas
últimas décadas não só o crescimento económico se tornou mais lento como
a economia se tornou menos competitiva no mercado global. A reação da
sociedade americana a estas adversidades fez-se por meio de múltiplos e
complexos mecanismos políticos, económicos e sociais que redistribuíram
os excedentes, agora mais limitados, favorecendo os mais ricos em
detrimento da classe média e dos mais pobres. Estamos perante decisões
surpreendentes que revelam uma enorme fé no modelo económico e
financeiro liberal da “free enterprise” que grande parte dos
americanos considera ter sido não só a causa e o motor da ascensão dos
EUA até se tornar o país mais poderoso do mundo em termos económicos e
militares, como de forma mais geral a origem e a essência da identidade e
do excecionalismo dos EUA (Lipset, 1997). Uma análise mais fina permite
identificar um conjunto de tendências, circunstâncias, processos
económicos e políticos, legislações e regulamentações que contribuíram
para provocar o recente aumento das desigualdades económicas e sociais
nos EUA. Entre elas encontra-se a tendência para a globalização que
baixou os salários nas indústrias mais afetadas pela concorrência
externa, os avanços tecnológicos que aumentaram mais as diferenças
salariais em função das qualificações e competências, especialmente no
domínio das tecnologias digitais. Outros fatores importantes foram a
degradação salarial provocada por níveis elevados e persistentes de
desemprego, a perda de representatividade e poder dos sindicatos nos
EUA, a desvalorização dos salários resultante da concentração do poder
económico em grandes empresas. Na área governamental manifesta-se,
especialmente no atual governo, a tendência para contrariar a
progressividade dos impostos, ou seja, diminuir a taxa de imposto sobre o
rendimento dos que auferem maiores rendimentos e a criação de regimes
especiais altamente complexos que aliviam a sua carga fiscal. Importa
ainda referir a financialização e desregulação crescente da economia
americana que produz a chamada “economia do champô” caracterizada por
ciclos de – bolha, rebentamento e nova bolha – no final dos quais o
colapso do sistema financeiro é evitado com injeções massivas de
dinheiro dos contribuintes, proveniente principalmente dos que têm
rendimentos médios e baixos. Este ciclo constitui um processo eficiente
de transferir poder financeiro e económico para os rendimentos mais
elevados. As políticas públicas nos EUA estão atualmente a contribuir
para agravar as desigualdades económicas mas tal é considerado um mal
menor face ao imperativo de manter o excepcionalismo e a hegemonia
económica e militar do país no mundo. Prevalece a opinião de que apenas
essas políticas públicas podem conseguir que o PIB do país cresça
anualmente acima dos 3%. Este programa político é apresentado, de forma
simplista mas politicamente muito eficaz, através da frase “Let´s make America great again”, que baseou a campanha do atual presidente dos EUA.
Importa salientar que as desigualdades económicas também se estão a agravar em outros países com economias avançadas, nas quais os jovens da geração do Milénio são os mais afetados. Tudo indica que o conjunto de países com economias avançadas está a ter maior dificuldade em gerar excedentes e usa os que gera de uma forma que agrava as desigualdades de riqueza, convencido erroneamente que poderá assim contribuir para resolver o problema que se mantém sem solução nas últimas décadas. Nos países com economias emergentes e nos restantes a situação é mais diversificada e complexa mas de um modo geral todos partilham uma maior capacidade potencial de gerar excedentes do que os países com economias avançadas, devido a razões demográficas e ao menor desenvolvimento das suas economias. É provável que tal capacidade vá decrescer tal como aconteceu nos países com economias avançadas. Globalmente e a médio e longo prazo a capacidade de gerar excedentes irá decrescer em todos os países embora de forma diferenciada devido à degradação e destruição do ambiente, à sobre-exploração de recursos naturais e às alterações climáticas. É pois previsível termos no futuro um mundo onde a prática, inventada no neolítico, de gerar de forma sistemática e contínua excedentes tão valiosos e abundantes quanto possível, para depois exercitarmos a nossa capacidade ancestral de cometer todos os imagináveis comportamentos extremos, poderá tornar-se cada vez mais difícil ou mesmo inviável. Esta situação, caso se concretize, corresponderia a conhecer os limites do modelo de grande sucesso que permitiu aumentar indefinidamente, pelo menos até ao presente, a prosperidade económica, o bem-estar e a qualidade de vida de grande parte da humanidade.
* Professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
IN "PÚBLICO"
13/05718
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