Sai uma colonoscopia, sff
Transmitir estes atos processuais filmados –
independentemente das questões legais, deontológicas ou outras – é, em
minha opinião, indecoroso (e até um pouco desumano).
Televisão é coisa que vejo pouco. No tempo livre
prefiro ler, conversar, ouvir música ou estar em sossego (esse, bem em
extinção), e quando ligo o aparelho quase sempre é para ver um filme ou
uma série naqueles canais onde é só escolher. Mas vou acompanhando o que
se passa, não só porque leio jornais e revistas, mas também porque
recebo clippings por obrigação profissional. É tema na ordem do dia a
repetida transmissão em mais do que um canal das filmagens de
interrogatórios. Já se opinou e discutiu muito, já se disse de tudo –
embora a coisa (nesta versão ou em variantes) não seja nova nem
original, mas foi agora “o despertar”. Embora o tema esteja quase gasto,
gostaria de deixar uma palavrinha sobre ele, até porque, à semelhança
de outros que se estranharam e depois entranharam, este fenómeno talvez
tenha vindo para ficar.
O que quero dizer não é sobre saber se é crime ou não, até porque a
resposta, na teoria, não é muito difícil (na prática, depende). Também
não é sobre saber se se trata de um produto que sai barato e vende bem,
um big brother de graça, até porque isso é óbvio e negá-lo é cantiga de
embalar crianças.
Também não é sobre a questão de saber se interessa a
divulgação para alguns propósitos que habitam o sistema de justiça
(sejam os da técnica do “lume brando” ou os da “vitimização”), pois isso
é evidente, como evidente é a hipocrisia de tantos, incluindo os que
torcem o nariz à transmissão mas apreciam ver e comentar.
Também não vou
sublinhar os efeitos quanto à presunção de culpa, fora e dentro dos
tribunais (sim, dentro também, não sejamos infantis). Nem o efeito que
tem para o futuro, levando a que diminua a espontaneidade do
interrogatório e, sobretudo, colocando-o cada vez mais afastado daquele
que é o seu propósito, que é a defesa do interrogado. Os arautos do
serviço público (não os arautos da justiça popular e da popularucha, por
incapacidade congénita) deviam refletir muito bem sobre tudo isto.
A coisinha que eu quero aqui dizer é simples, mas acho que é
importante, até talvez mais do que o referido acima. É que transmitir
estes atos processuais filmados – independentemente das questões legais,
deontológicas ou outras – é, em minha opinião, indecoroso (e até um
pouco desumano). A questão não é saber se os processos em causa e os
temas neles tratados têm ou não interesse público, porque é claro que
têm. O tema é saber até onde se pode ir para servir essa ideia de
interesse público.
Mal comparado – mas serve bem para o que aqui quero
exprimir –, é como se o interesse público em saber se uma pessoa
publicamente relevante está doente ou não justificasse transmitir a
realização dos seus exames médicos, por exemplo, uma colonoscopia. O que
vos parece? Gostariam de ver, achariam bem? E se fosse a vossa
colonoscopia? É chocante ou exagerada a comparação? Talvez, mas não é só
a comparação que é porventura chocante ou exagerada. Paremos um pouco
para pensar bem acerca do estádio onde já estamos e para onde ainda
podemos ir.
IN "i"
27/04718
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