01/02/2018

VIRIATO SOROMENHO MARQUES

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A indústria 
da desconfiança 
contra a democracia

Como tudo o que é grande, a democracia representativa tem dentro de si própria as suas mais graves ameaças. 

As democracias podem ser agredidas do exterior, mas aquilo que as mata cresce dentro de si até à implosão. Dois estudos publicados nos últimos dias ajudam a perceber melhor o tema desta crónica. O primeiro deles é o "2018 Edelman Trust Barometer", e pode ser descarregado em linha. 

Como diz o título, este estudo anual, já na 18.ª edição, analisa e quantifica (numa escala de 0-100) o sentimento de confiança dos cidadãos em 28 países diferentes. Confiança em relação ao sistema político, à comunicação social, às ONG, serviços, etc. Alguns dos resultados, mesmo que não completamente inesperados, fazem pensar. Apesar do atual surto de crescimento económico mundial, só quatro dos 28 países se encontram numa "zona de confiança" (60-100). De entre os 20 países na "zona de desconfiança" (1-49), destacam-se oito dos nove países da União Europeia que entram no estudo (só a Holanda está na "zona neutra", com 54 pontos). 

Os EUA são o caso de perda de confiança mais notável, tendo caído nove pontos apenas num ano (de 52 para 43). A confiança viajou toda para Leste, para a China, Indonésia e Índia. Estes estudos medem perceções e sentimentos. Refletem com mais rigor tendências do que realidades objetivas. Duas conclusões provisórias podem ser retiradas: os europeus estão desconfiados e desanimados (dos 38 pontos da Irlanda aos 47 da Espanha). 

Se na Ásia a tendência é melhor do que o estado atual, na Europa ocorre o contrário. A desconfiança acentuada na Europa já não se explica no espelho da economia. Ela mergulha num pessimismo com raízes mais profundas e complexas. E isso é preocupante, pois a UE só poderá evitar a desintegração na próxima década se efetuar reformas e partilhar soberania. Ora, a desconfiança reinante está nos antípodas da visão, coragem e solidariedade que são necessárias para realizarmos e aprofundarmos um destino comum. 

A segunda conclusão prende-se com os efeitos desastrosos e mensuráveis da presidência Trump. Como já escrevi há um ano nesta página, Trump acabará por dividir os EUA de um modo tão brutal como em 1860, antes da Guerra Civil. A desconfiança e o pessimismo dos norte-americanos com a política, contudo, não é um acidente natural, mas sim o resultado de um lento processo de erosão democrática. E é aqui que importa chamar a atenção para o luminoso contributo prestado pelo economista George R. Tyler, no seu recentíssimo livro A Democracia Bilionária. 

O Rapto do Sistema Político Americano (BenBella Books). Com a autoridade de uma copiosa documentação, Tyler demonstra o que já o filósofo John Rawls denunciava há 20 anos: o Congresso tornou-se uma casa de leilões onde as leis são compradas e vendidas de acordo com o princípio "pagar para jogar" (pay-to-play). A "reforma fiscal" de Trump, retirando aos pobres para dar aos ricos, limita-se a acentuar uma tendência de décadas. Se hoje o inquilino da Casa Branca é uma espécie de Joker, muito antes disso o Congresso habituou-se à figura do "deputado-mercenário", raptado pelos subornos milionários dos super-ricos. 

A transformação da democracia em plutocracia mobiliza uma poderosa indústria de mentira geradora de desconfiança, visando manipular e intoxicar a vida pública. O soez ataque de carácter a Mário Centeno, caluniando o mais relevante político português no atual quadro europeu como alguém que se vende por um prato de lentilhas, talvez não seja só iniquidade espontânea. Talvez seja maldade industrial.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
31/01/18

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