O outro diabo e o trabalho
1 - O conflito de baixa intensidade entre o
governo, a parte do PS que gostava de que o PS fosse outra coisa, o BE e
o PCP sobre legislação do trabalho preencheu a semana política. Ou
seja, um assunto que mal se viu, esmagado pela extraordinária
importância dos humores de Bruno de Carvalho e as humorísticas disputas
eclesiásticas sobre as alcovas dos fiéis.
Na
melhor das hipóteses, ficou pela enésima vez patente a incapacidade dos
partidos que apoiam a solução governativa de se entenderem em
questões-chave. Enquanto a devolução de direitos e a restituição de
regalias (ambas justas) foram o eixo central da política governamental
tudo estava bem, no momento em que é preciso governar, reformar,
intervir em questões estruturais, as diferenças inultrapassáveis entre o
PS e os seus circunstancialíssimos parceiros vieram à tona. Não é
possível misturar azeite e água.
As
promessas de amor eterno e os elogios que os socialistas dedicam aos
seus parceiros soam cada vez mais a falso. Uma espécie de divórcio que
querem que seja a bem, mas em que não estão dispostos a dar um tostão
que seja do património que construíram em comum. Continue a situação
económica em bom estado, prossiga a redução do desemprego, não exista
qualquer convulsão internacional que traga turbulência e o PCP e,
sobretudo, o BE vão arrepender-se amargamente de não terem ido para o
governo: quer se queira quer não, é o governo que capitaliza o sucesso.
BE e PCP estão numa situação em que se não protestam correm o risco de
ver os seus eleitores tradicionais incomodados; se protestam arriscam-se
a ser vistos pelo eleitorado da esquerda moderada (a grande maioria do
eleitorado de esquerda e centro-esquerda) como forças de bloqueio quando
os resultados estão a ser bons. É preciso dizer que os bloquistas são
os que terão mais problemas. Não só o eleitorado tradicional do PCP é
mais fiel, como o BE não tem as fortes raízes dos comunistas no
movimento sindical e nas autarquias (mesmo assim, foi o que foi nas
últimas eleições autárquicas).
Mantenha-se
tudo como está e serão os bloquistas e os comunistas que ficarão a
pensar se a vinda do diabo teria sido assim tão má. Mais, os resultados
eleitorais trarão maiores problemas para a esquerda do PS do que para o
PSD.
2 - Assisto a muitas discussões sobre flexibilidade e rigidez de despedimentos e poucas sobre esta relação com a produtividade.
Há
países em que o despedimento individual é praticamente livre e em que a
produtividade é elevada e outros em que o despedimento também é livre e
a produtividade baixíssima. Como temos países com uma elevada rigidez
nos despedimentos que têm elevados índices de produtividade e países com
o mesmo tipo de legislação laboral com reduzida produtividade.
Circunscrever
a questão da produtividade à facilidade ou dificuldade de despedir ou
colocá-la como fator decisivo na criação de riqueza é um erro crasso.
Aliás, Portugal é um excelente exemplo disso. Somos um país onde se
trabalha muitas horas e a produtividade é baixa, e não foi, nem é, a
antiga rigidez ou a recente flexibilidade nos despedimentos que alterou o
que quer que fosse. E, no entanto, a legislação laboral é sempre vista
como o alfa e o ómega da discussão sobre produtividade e crescimento
económico. Não há leis laborais nem maior facilidade em despedir que
remedeiem a nossa má organização do trabalho, a deficiente formação da
maioria dos nossos empresários e gestores, a falta de investimento, o
desprezo pela formação dentro e fora do posto de trabalho.
Numa
outra dimensão, é também recorrente uma análise meramente económica
sobre o trabalho e o emprego. Aparece amiúde quando se discute o valor
do salário mínimo ou mesmo a sua própria existência.
Convém
recordar que o salário mínimo e o seu valor têm que ver com o especial
papel que a comunidade dá ao trabalho. Algo com origens nos valores mais
profundos da civilização judaico-cristã e enunciado, por exemplo, de
uma forma veemente pela doutrina social da Igreja. O trabalho define em
grande parte o papel e a inserção do cidadão na comunidade. Trabalhar
tem de corresponder a uma retribuição que garanta a um homem ou a uma
mulher viver com dignidade - ainda estamos longe disso no nosso país.
Colocar o trabalho como um simples fator de produção põe o homem com a
mesma dignidade de uma máquina ou de um pedaço de terra. Não pode haver
argumento económico que se sobreponha ao conteúdo ético do trabalho.
No
mesmo sentido, apesar de numa dimensão diferente, ver o trabalho como
uma simples transação em que as partes estão em igualdade de
circunstâncias não é admissível porque simplesmente não é verdade. A
regulamentação - que tem de ter limites para que não torne impossível a
organização do trabalho que tem sempre de ser do empresário - de uma
relação que será sempre desequilibrada tem de, mais uma vez, proteger a
parte mais fraca e impor direitos e deveres não negociáveis.
É
verdade que é impossível olhar para o trabalho como se olhava, sequer,
há vinte anos. A transformação da maneira como se trabalha, as mudanças
que as novas tecnologias provocaram, a globalização, exigem uma reflexão
sobre o trabalho e o que a nova realidade implica que em larga medida
ainda está por fazer. Mas por muito que esse novo mundo se imponha,
retirar o conteúdo ético ao trabalho ou transformá-lo num mero produto
nunca pode ser opção.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
11/02/18
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