A leitura de hipermercado
Eram quase nove da noite e o sinal sonoro já tinha soado: "Salve-se quem
puder, este hipermercado fecha em 3… 2…" Um miúdo à minha frente na
fila estava em modo "daqui não saio daqui ninguém me tira", agarrado a
um livro e desgarrado do pai que fazia as compras para a semana com cara
de fim de mês. Tudo normal, tirando a anormalidade de termos ali um
miúdo a ler um livro. Olhei duas vezes: um livro, feito de papel. Sem
ligação à Internet.
Se eu, fiel
consumidora de bens de quinta necessidade, estava concentrada na
variedade do meu cesto (ovos moles, pão com sementes de chia, camarões
para o jantar), o miúdo só tinha olhos para o que lia. Apoiado no pai,
que tentava equilibrar cereais de pequeno-almoço, iogurtes e lombos de
pescada em cima de maçãs, detergente para a loiça e rolos de papel de
alumínio, ele só se mexia se o pai se movesse.
Percebi que o
livro seria importante para ele quando, perdendo o pé de apoio, quase
caiu mas não desviou o olhar da obra e conseguiu virar a página antes de
ouvir o ralhete do pai e subsequente riso da senhora na caixa. Sorri
para mim: passei anos a ser aquele miúdo. Devo milhares de euros às
maiores cadeias de hipermercados do País (prescreveu no final do século
XX, já devolvi tudo em cartão) – é, passei anos a ler livros sem os
pagar.
Espreitei
outra vez o miúdo. Enquanto o pai punha as compras em sacos, ele,
carente de óculos, enfiava a cabeça nas páginas. Sem saber, era um
quadro vivo a devolver-me a esperança: o melhor do mundo são mesmo as
crianças, os livros e os hipermercados cheios de crianças a lerem
livros. De repente, fechou o livro. Espreitei uma última vez e consegui
ver-lhe o título: A Seita. E a esperança foi a última a morrer.
IN "SÁBADO"
29/12/17
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