Natal inquieto
O facto de justamente nada, na mente ou na alma, ter vetado a
António Costa, na caracterização ou resumo do ano, uma exibição sonora
de felicidade, de "saboroso", é que deixou meio país de boca aberta
1. Natal inquieto. Não há aumentos, prendas, movida lisboeta, turismo, turistas, iluminações na Avenida, restaurantes lotados, beautifull people,
subsídios de Natal, pontes de Natal que disfarcem os agrestes dias que
vivemos. Apenas os anestesiam. Deixando num fugidio entre-parêntesis
este indefinível mal-estar que se transformou no pão-nosso das nossas
incertas jornadas. A claudicante saúde civilizacional da Europa, torna
tudo mais sombrio, A Catalunha é já amanhã e não pode correr bem, o
mundo arde, os seus líderes assustam-nos. Onde está o nosso porto de
abrigo?
2. António Costa definiu, fora de portas,
o ano que finda como «saboroso». Estava obviamente a referir-se a
eleição de Centeno. O meu ponto é que não lhe tenha ocorrido que, seja
em que circunstâncias for, 2017 proíbe certos adjectivos. O facto de
justamente nada, na mente ou na alma, lhe ter vetado, na caracterização
ou resumo do ano, uma exibição sonora de felicidade é que deixou meio
país de boca aberta. Foram demasiado os mortos, trágico o sofrimento,
intensos a perda e o luto. E têm sido tão lenta e descoordenada a
reconstituição do regresso à vida – indemnizações, casas, apoios – que a
escolha do adjectivo foi quase acintosa.
3. Nos
três primeiros trimestres do ano que finda a banca emprestou às famílias
uma larga mão cheia de milhões. Não retive quanto, fiquei com o
essencial: a verba é bem maior que a “oferecida” durante os 12 meses do
ano anterior. Não se alcança a política de crédito dos bancos (ignorando
avisos do BdP), mas alcança-se a sua vertigem. Outra vez.
4.
Catorze governantes, quatorze, têm vindo a sair do palco do poder pela
porta dos fundos. Nenhum — ou quase nenhum — por razões ditas “normais”,
antes por falhas mais ou menos sombrias cometidas por eles próprios em
relação as áreas que tutelavam. A última demissão (secretário Estado da
Saúde), alguém incauto – que o recomendava para o governo? Não
precisamos de o conhecer melhor: o país já lhe tirou o retrato e eu
ouvi-o com a atenção quanto baste para escrever isto sem tropeçar na
minha própria consciência. O presidente do PS considerou os quatorze
casos como “periféricos da acção governativa”. Da ética republicana
também serão periféricos? Diz o mesmo Carlos César que o que interessa
são os “resultados da acção governativa”, o resto é “a espuma dos dias”.
Qual resto? Em que nível da “acção governativa” entra um Estado
clientelar, esburacado, exangue, incapaz de prever, proteger, cuidar,
resolver, fiscalizar? Em que classificação se arruma a Legionella,
Tancos (e sim, talvez não fosse só Tancos a recomendar a exoneração do
Chefe do Estado Maior General das FA e do Chefe do Estado Maior do
Exército); o Infarmed tratado como mercadoria que sem aviso prévio se
muda de sítio por razões de propaganda? Pior: em qual prateleira arrumar
– na “acção governativa”, na “espuma dos dias” ou na “periferia”? — a
vergonhosa entrada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no capital do
Montepio?
Há uma espécie de impunidade que os socialistas se
atribuem com prodigalidade que unida ao carinho e/ou desvelo com que a
grande parte da media os olha, descreve e aceita tem vindo a torná-los
nos novos indiscutíveis donos disto tudo. Se não como admitir o
admirável estatuto familiar /governamental/ político/estatal/ do sempre
ele Carlos César e da restante panóplia de esposos, pais, filhos,
cunhados e afilhados, tios e primos. Gente muito lá da casa.
5. Vieira da Silva? Espantei-me, como toda a gente. É homem sério e persona grata
cá em casa. Recusei a negligência e a culpa, mas gostaria que ele
soubesse que nos parece haver ainda algumas sombras que gostaríamos que
fugissem desta história (contada aliás sempre para obter os mesmos
efeitos). Quanto às gambas e ao vestido de duzentos e tal euros não me
comovem. Só num pais pequenino, invejoso e rancoroso é que se passam 15
dias a chorar obsessiva e hipocritamente um pacote de gambas. Já dei
para o peditório voyeurístico.
6. É um puro
exercíco de esquizofrenia já transformando num círculo infernal: tudo
“foi culpa do anterior governo” . O PS parecer capturado por si mesmo
nesta demencial cavalgada de acusações. Observe-se o olhar febril de
João Galamba, guest star do circo acusatório e fica-se com uma
certeza: ninguém poder levar aquilo a sério. Deviam além disso saber
duas coisas. Uma: o PSD tem boa memória e não gosta que lhe pisem os
calos.Duas: António Costa vai precisar dele.
IN "OBSERVADOR"
20/12/17
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