HOJE NO
"OBSERVADOR"
Nobel da Medicina para os mecanismos que regulam o relógio biológico
O prémio Nobel da Medicina, atribuído todos os anos pela Academia do Nobel no Instituto Karolinska, premiou os três investigadores que descobriram o mecanismo que regula o relógio biológico.
O prémio Nobel da Medicina 2017 foi atribuído a três investigadores
estadunidenses nascidos na década de 1940: Jeffrey C. Hall, da
Universidade do Maine, Michael Rosbash, da Universidade Brandeis
(Waltham) e Michael W. Young, da Universidade Rockefeller (Nova Iorque)
pela descoberta dos mecanismos moleculares do ciclo circadiano, o
relógio biológico que regula os organismos.
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O prémio tem o valor de nove milhões de coroas suecas (cerca de 937 mil
euros) que será distribuído pelos três laureados A seleção dos
investigadores, entre as centenas de nomeados todos os anos, permanece
absolutamente secreta até ao momento do anúncio dos vencedores – aliás,
os nomeados de cada ano só podem ser conhecidos ao fim de 50 anos.
“Fiquei tão contente com o anúncio que comecei a ligar às pessoas do
grupo que estão interessadas nesta área”, disse ao Observador Cláudia
Cavadas, investigadora no Centro de Neurociências e Biologia Celular
(CNC) da Universidade de Coimbra. “E eu nem sequer conheço os
investigadores.” O motivo da alegria é que esta distinção é “muito
importante para a área de investigação”, uma área em que a equipa de
Cláudia Cavadas começa a dar os primeiros passos
Andar ao ritmo do relógio biológico
Já alguma vez teve a oportunidade de ver trabalhar um relojoeiro?
Esventrar um relógio de pulso exige uma manipulação minuciosa dos
mecanismos que fazem os ponteiros seguir o seu ritmo. Pôr o relógio
biológico a funcionar – o nosso e o dos restantes seres vivos – e
sincronizá-lo com a rotação do nosso planeta exige a mesma minúcia e
complexidade.
Para perceber como funciona o relógio biológico dos
seres vivos, os investigadores usaram a mosca da fruta como organismo
modelo e conseguiram isolar o gene que controla este ritmo diário –
também chamado de ciclo circadiano. Este gene é responsável
pela produção de uma proteína que se acumula nas células durante a
noite e é degradada durante o dia. Depois deste, outros genes com
influência direta e indireta no relógio foram sendo descobertos.
A
proteína produzida durante a noite tem assim um ciclo de 24 horas que
acompanha o ciclo circadiano: umas vezes a produção é estimulada, outras
vezes é inibida. Um relógio que faz com que os mecanismos avancem ou
recuem resulta no organismo, mas deixaria o relógio de pulso com os
ponteiros trocados.
Ainda que tenha sido estudado nas moscas da
fruta, este mecanismo existe em todas células e formas de vida: dos
organismos unicelulares, como as bactérias, até aos organismos mais
complexos como plantas e animais – incluindo o homem. Sabe-se também que
os ritmos circadianos são mecanismos muito antigos e que se mantiveram
mais ou menos inalterados durante a evolução.
Enquanto o relógio de pulso bate os segundos a um ritmo certo e
constante, o nosso relógio biológico é capaz de se adaptar aos vários
momentos do dia, incluindo à presença ou ausência de luz. E se o relógio
de pulso nos ajuda a prevenir os atrasos, o nosso relógio interno tem
influência no nosso comportamento, ciclos de sono, metabolismo,
temperatura corporal e produção de hormonas.
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O sistema circadiano
é um mecanismo auto-sustentado, com ciclos de 24 horas, condicionado
por estímulos externos, como a luz, e que afetam processos fisiológicos
(que regulam os organismos).
Apesar de a luz ser um dos
principais estímulos do relógio biológico, o que os investigadores agora
galardoados conseguiram demonstrar é que o relógio funciona mesmo
quando os organismos são colocados às escuras.
Mas, tal como um
relógio de sol que sem a luz do astro rei não cumpre a sua função, o
nosso relógio interno também fica desregulado com alteramos os ciclos de
dia e noite ditos normais, como quando viajamos para um país com um
fuso horário completamente diferente daquele de onde partimos, quando
trabalhamos por turnos ou quando fazemos uma direta.
Se a pilha
gasta do relógio de pulso rebentar no interior do aparelho arriscamo-nos
a ficar com um relógio avariado. Da mesma forma, a interferência no
nosso ritmo circadiano, por exemplo com maus hábitos de sono, pode levar
ao aparecimento ou agravamento de doenças, como distúrbios metabólicos,
doenças neurodegenerativas ou cancro. Por outro lado, as doenças também podem afetar o ritmo circadiano.
A investigação desenvolvida por Jeffrey C. Hall, Michael Rosbash, e
Michael W. Young permitiram perceber os mecanismos básicos de controlo
do relógio interno. As implicações desse controlo (e da falta dele)
deram origem a uma área de investigação em expansão, não tivesse este
mecanismo tanta influência na nossa saúde e bem-estar.
Onde nos leva o relógio biológico?
Um dos produtos desta investigação são os modelos de relógios
moleculares cada vez mais complexos, com muito mais genes e proteínas
envolvidos na regulação dos mecanismos – uns ligam, outros desligam. Por
isso, será mais correto dizer que o relógio biológico de um animal,
mais do que um relógio de pulso, é uma loja de relógios em que todos têm
de estar sincronizados.
O
relógio central desta rede complexa está localizado no hipotálamo – uma
região do cérebro responsável por regular muitos processos
fisiológicos. A luz é o principal estímulo externo deste relógio que
controla os relógios periféricos, como os que estão localizados no
fígado ou no estômago. Mas não é o único, como foi demonstrado pelos
laureados.
“Sabe-se que o epitélio do estômago [tecido que reveste
o interior do órgão] é renovado durante a noite”, disse ao Observador
Cláudia Cavadas, investigadora no Centro de Neurociências e Biologia
Celular. “O que acontece [aos relógios internos desse órgão] se comermos
a essa hora?”.
A coordenadora do grupo de Neuroendocrinologia e
Envelhecimento do CNC refere-se não só a quem come fora de horas por
opção, mas sobretudo aos grupos profissionais que são obrigados a
trabalhar por turnos, como os enfermeiros. A mudança constante de turnos
– ora se trabalha durante o dia, ora se trabalha durante a noite – tem
implicações no funcionamento do organismo, o relógio interno não tem
tempo para se sincronizar com os novos horários.
O trabalho por turnos é um dos temas que preocupa a investigadora que
espera que a investigação na área possa levar a alterações no Código de
Trabalho. E as noitadas dos estudantes também não são menos relevantes.
Sabe-se que as noites perdidas têm impacto na memória e na
concentração, mas que outros efeitos poderá ter, nomeadamente no relógio
interno?, pergunta.
O estilo de vida pode afetar o ritmo
circadiano, mas as doenças também. Esta é uma área de investigação que a
equipa de Cláudia Cavadas quer explorar: De que forma as
patologias alteram os genes que regulam o relógio biológico? E durante o
envelhecimento, será que os relógios biológicos também sofrem
alterações?
Cláudia Cavadas tem neste momento mais
perguntas que repostas, mas acredita que o trabalho de investigação que a
equipa vai desenvolver poderá ter impacto na investigação aplicada e
nos tratamentos médicos. Pode descobrir-se que determinados medicamentos
são mais eficazes ou têm menos efeitos secundários quando tomados em
momentos específicos do ciclo circadiano.
Lembrando que as alterações do ritmo biológico podem levar ao
aparecimento de doenças faz pensar noutra linha de investigação e
tratamento: a reposição do ciclo circadiano.
E quem sabe se
conhecendo os ciclos circadianos dos agentes patogénicos (causadores de
doenças) se podem descobrir novas formas de combater bactérias e
parasitas. Por enquanto, não é mais do que especulação, mas a
investigadora tem esperança que se torne realidade.
Quais eram as previsões para este ano?
O secretismo em torno da lista de nomeados e as escolhas inesperadas
incentivam as tentativas de previsão, ainda que as apostas possam estar
muito longe da realidade – como se verificou mais uma vez este ano. As
apostas vão de preferências e palpites a métodos mais ou menos
sistemáticos, como os da Clarivate Analytics.
Todos os anos, a
Clarivate Analytics analisa os artigos científicos publicados à procura
de potenciais candidatos aos prémios Nobel. Aqueles que atingem o topo
das citações dentro da sua área de investigação têm mais probabilidade
de serem laureados. Pelo menos, assim assume a empresa.
A lista de 2017
para a Medicina inclui Lewis C. Cantley, pela descoberta da função da
enzima PI3K no crescimento dos tumores, Karl J. Friston, pela
contribuição para a análise de imagens do cérebro (como ressonâncias
magnéticas), e a dupla Yuan Chang e Patrick S. Moore pela descoberta do
vírus herpes associado ao sarcoma de Kaposi.
Já o site StatNews fez
uma aposta diferente e aponta as atenções para a imunooncologia e
nomeia três investigadores sedeados nos Estados Unidos: Jim Allison, do
MD Anderson Cancer Center, Gordon Freeman do Dana-Farber Cancer
Institute e Arlene Sharpe da Harvard Medical School. O trabalho feito
por estes investigadores levou a criação dos primeiros tratamentos de
imunoterapia contra o cancro.
Há quem deposite esperanças na técnica CRISPR que tem permitido grandes avanços na investigação da edição genética de células, incluindo de células humanas.
O jornal espanhol El País, com outra abordagem, lembrou
que desde 1901, quando se iniciou a atribuição do prémio Nobel, apenas
6% dos laureados em Medicina foram mulheres. Uma tendência que tem vindo
a mudar nos últimos anos: dos 48 prémios atribuiu (11 entre 1981 e 2000
e 19 entre 2001 e 2016).
* Há vinte anos estas pessoas seriam consideradas "esotéricas", estamos na era da medicina humanizada. Um grande médico português, Diniz da Gama, dizia que a medicina era a arte de ver a natureza recuperar o corpo.
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