Pequeno conto de Cordel
O Sr. Germano ia queimando os seus dias, manuseando as suas peças de dominó. A metafísica da arquitetura divina do seu ofício não era a única coisa invisível naquelas peças de dominó. Nessas peças velhas moravam também colónias de bactérias.
O Sr. Germano sentia-se no direito de ter hobbies. Tinha dedicado
toda uma vida de trabalho árduo como TOC, por isso agora devotava todo o
seu tempo a satisfazer os seus caprichos de horas vagas. O dominó
encabeçava o topo das suas preferências. O facto de não ter companhia
não o demovia de se entregar de corpo e alma a essa atividade, à qual se
dedicava de forma pouco convencional.
Sentava-se sozinho, com a
diligência de quem completa uma tarefa vulgar, e começava por dispor um
imenso mar de peças viradas para baixo, num retângulo que ocupava todo o
chão da sua cave.
Depois, com paciência, de joelhos, ao longo de
vários dias, pintava por cima do lençol de dominós um quadro, uma
espécie de puzzle que se revelava no seu conjunto. No fim, numerava as
peças, recolhia-as uma e uma e dispunha-as novamente, na vertical, por
ordem. No fim de tudo faria tombar uma das peças e tudo aquilo se
desfiaria em cascata. Sentia-se o Criador, ali na sua pequena e húmida
cave, que sempre era mais digna do que o seu posto de trabalho no
escritório. Pelo menos não estava sujeito àquela corrente de ar que o
deixara para sempre, de forma crónica, a pingar do nariz. E assim o Sr.
Germano ia queimando os seus dias, manuseando as suas peças de dominó. A
metafísica da arquitetura divina do seu ofício não era a única coisa
invisível naquelas peças de dominó. Nessas peças velhas moravam também
colónias de bactérias. Assumiam diversas bioformas. Em cada peça
habitavam milhões de milhares de vidas que se conjugavam em harmonia. E
uma dessas espécies era afeita à arte de pensar. Numa das peças, seus
habitantes filosofavam sobre o grande esquema global das coisas,
inquietados pela sua finitude e seu propósito divino.
Gerações e
gerações de bactérias iam depurando, com o correr dos tempos, o saber
das suas grandes questões. Sabiam que habitavam a sua peça em concreto.
Batalhões de aventureiros, organizados em missões interpeças, indagavam
sobre vida noutras peças. Mas não podiam sequer sonhar de onde vinha a
sua peça. Não sonhavam que sua peça vinha de uma safra de sucessivas
pilhagens em que o Sr. Germano ia subtraído o Clube dos Fenianos de todo
o seu parque de objetos lúdicos, em anos de tardes recreativas de
domingo. Semigrupos de bactérias pensantes concebiam vagamente um vasto
lençol de outras peças, sempre em constante mutação, e que um dia uma
peça se lhes tombaria em cima, e que por sua vez sua peça tombaria por
sobre uma outra, e todo o esquema global em que concebiam a existência
de sua espécie se desordenaria por fim, num apocalipse inevitável.
Outros baseavam toda a sua existência na Fé. Acreditavam num Sr.
Germano, a que davam vários nomes.
Do Sr. Germano vinham (não ousavam
saber como, mas também um nariz humano é coisa que não seriam capazes de
conceber) e para o Sr. Germano (chamemos-lhe assim) voltariam um dia.
Várias correntes de pensamento se debatiam, de forma acesa e ao longo
vários minutos (o que para estes – para nós – minúsculos seres se poderá
traduzir em milénios), se a vontade desse ente superior seria ou não
consciente. Alguns, profeticamente, vaticinavam ideias de um glorioso
desenho, um porvir onde um dia todos se juntariam num Uno que finalmente
faria sentido. Mas esses não eram levados a sério. Seus habitantes
concentravam-se, isso sim, em ir mais além, sempre dentro do alcance do
visível, e era já possível conhecer a vida num raio de 3 a 4 peças. Mas
mesmo assim nada fazia sentido.
Entretanto, o Sr. Germano já
tinha acabado de dispor as suas estimadas peças todas na vertical. Já se
podia dirigir, triunfal, à peça inicial, aquela que desencadearia o fim
último dos seus planos. Ajoelhou-se e soprou. As peças tombaram em
cadeia. Em poucos segundos o
Sr. Germano viu desfiar, em cascata, as
peças que constituíam o todo da sua criação, e viu ganhar forma a cesta
de frutas meio tosca que tanto trabalho lhe tinha dado a pintar.
IN "VISÃO"
31/08/17
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