Gostava de saber de ti…
Colei
os olhos aos teus assim que te vi. Acho que se cruzaram. O teu olhar
seguiu em frente, assustado, surpreendido por aquele colo que não te era
nada. O meu olhar? Continuou mergulhado nesses olhos pequeninos
castanhos que, dificilmente, vão afogar-se nas memórias de 43 anos de
vida. Não tens mais de dois, vividos neste mundo de abismos.
Atravessaste o Estreito de Gibraltar ao colo de uma estranha, no meio de
70 homens. Partiste nos braços de outro estranho… o que é feito de ti?
“Está lá dentro uma criança! É uma menina, não deve ter mais de dois
ou três anos”. O militar da Guardia Civil tem uma máscara na cara.
Tapa-lhe a boca, a expressão, abafa-lhe a voz grave, as parcas palavras.
Aparentemente, também o distancia daquelas sete dezenas de vidas, a
juntar a tantas centenas, intercetadas quando a embarcação de madeira
quase tocava areia da costa de Barbate. São todos magrebinos. Todos
homens, quase metade tem menos de 18 anos.
Exceção para a menina, que continua no convés da embarcação do
Salvamento Marítimo, e para a mulher que a “transporta”. Assim, que o
levante amainou fizeram-se ao caminho. Só nos primeiros seis meses deste
ano, já tentaram cruzar o Estreito de Gibraltar mais pessoas do que em
todo o ano passado. Em junho e julho foram 2.000. Desde janeiro 6.000
foram resgatadas das águas, daqueles 14 km que separam África do “El
Dorado” europeu, transformados agora numa vala comum, numa gigantesca
fossa de vergonha para todos nós, europeus.
A APDHA, a Associação Pró Direitos Humanos da Andaluzia, assegura que
nos últimos dez anos perderam a vida no Estreito 6.000 pessoas. Corrijo:
foram encontrados 6.000 corpos, porque cada vez que é detetado um
cadáver, dizem os especialistas, há outros dois que desaparecem. Contas
feitas: desde 2006 morreram cerca de 18.000 subsaarianos e magrebinos no
Estreito. Alguém chorou uma lágrima por eles? As ONG no terreno
garantem que não.
As populações estão fartas dos corpos desmembrados que aparecem nas
praias. Os elementos do Salvamento Marítimo, Guardia Civil, Polícia
Nacional, Cruz Vermelha estão esgotados, física e psicologicamente. Os
alertas sucedem-se dia após dia, noite após noite. No parlamento
espanhol, no Congresso dos Deputados, em Madrid, longe do cheiro a
maresia, dos gritos abafados pelo sopro do vento e da agitação da maré,
dos restos de embarcações e de corpos, o Ministro do Interior, Juan
Ignacio Zoido, lava as mãos e a alma.
Diz que Espanha não tem culpa que os imigrantes se lancem ao mar. Como
se Espanha, como se a Europa não tivessem culpas no cartório,
responsabilidades num passado não muito longínquo, onde apenas
interessou explorar, tirar e quase nada deixar às populações que já lá
viviam.
Só quem esteve no Sahel, na faixa semidesértica que vai de Dakar ao
Sahara, sabe, entende, percebe por que razão fogem eles de lá. Por que
razão é melhor uma morte incerta a uma existência que não vale a pena
ser vivida. Eu estive lá. Sei do que falo. Há mais de uma década que
morrem milhares na rota pelo deserto, rumo à Líbia, ou no mar, a caminho
das Canárias, da Andaluzia.
Aos poucos, três a três, a começar pelos mais jovens, saem da
embarcação. Vêm descalços, com a roupa colada ao corpo, da água e do
suor. Entram diretamente numa tenda de campanha da Cruz Vermelha
Espanhola onde se despem por completo. Qualquer recordação da vida que
deixaram do lado de lá do Estreito fica ali, como se não houvesse
passado, apesar de também, dificilmente, haver futuro.
O presente encarrega-se de dar-lhes um fato de treino azul-escuro,
mocassins, iguais para todos, e um kit alimentar, com bolachas, sumo e
outras miudezas que desaparecem num ápice. Seguem para o autocarro da
Guardia Civil. Desta vez, não levam as mãos algemadas porque estamos a
gravar imagens.
Cometeram um crime. Tentaram entrar em território espanhol, quase
conseguiam, sem documentação. Os menores vão para instituições de
solidariedade social, todos os que têm 18 ou mais anos vão ser fechados
nos CIE, Centros de Integração de Estrangeiros, que não são mais do que
prisões. Quem faz esta denúncia são organizações como a APDHA, a
Algeciras Acoge ou a Associação Al Khaima, sediada em Tânger.
Conversei com todas elas, tal como falei com a professora Elisa Garcia
España, da Universidade de Málaga. Diretora do Observatório
Criminológico do Sistema Penal ante a Imigração não poupa críticas ao
sistema, que trata os migrantes como criminosos, encerrando-os durante
60 dias nos CIE, sem acesso a liberdade, à justiça, a um simples pedido
de asilo, antes de serem deportados.
Os menores vão ter tratamento igual quando atingirem a maioridade, mas
nessa altura já não terão qualquer vínculo à família, à comunidade que
abandonaram, muitas vezes graças ao dinheiro que os pais amealharam uma
vida inteira. Vão ser estranhos na sua própria terra, revoltados, com
uma vontade redobrada de fugir, mesmo que lhes custe a vida. Quem já
tentou uma vez, tenta uma segunda…
Acusam-se as “máfias” que atuam nos países de origem, os protestos e a
repressão no Rife, na região, montanhosa no norte de Marrocos, que
estará a levar à fuga de centenas de magrebinos, perseguidos pelo regime
de Mohamed VI. No entanto, este movimento não é de agora. Esta tragédia
silenciosa tem mais de uma década e se há quem se sirva dela é porque
já existia.
Hayat (vida em árabe), vamos chamar-lhe assim, desembarca quando chega a
Cruz Vermelha. Tem um tumor enorme na face esquerda. De um lado tem
cara de anjo, indefesa, do outro a deformação transforma-lhe a bochecha
de bebé em algo que todos evitam olhar, enfrentar… que cobardes somos.
Em poucos segundos passam-me mil coisas pela cabeça. Quem é? Porque está
aqui? Quem a terá enviado? Por que motivo veio com uma mulher pela qual
não demonstra qualquer afeto, denunciando que não existem laços
emocionais entre elas? Será que os pais só tinham dinheiro para pagar a
travessia da menina? Terão enviado a filha para se livrar dela? É este
um ato desesperado para a cura da criança, mesmo que isso signifique
nunca mais saber do seu destino?
Pergunto ao médico: “é grave?” Da porta da ambulância olha e responde,
de forma seca enquanto assina um papel: “temos de fazer uma biopsia,
vários exames”. A porta fecha-se. A viatura arranca. Lá dentro, vai
Hayat. A mulher voltou para trás, também ela vai ser deportada.
Hayat chegou a Barbate seis meses depois de Samuel, mas viva. Tal como o
pequeno Aylan, o menino sírio que deu à costa turca e cuja foto correu
mundo, Samuel também apareceu sem vida numa praia de Cádiz. Ambos eram
crianças, ambos fugiam da guerra com a família, ambos perderam a mãe nas
águas do Mediterrâneo.
Contudo, uma pequena diferença faz com que Samuel não seja um mártire: é
africano, da República Democrática do Congo, onde uma guerra civil
consome vidas sem fim há décadas. A cor da pele diferencia. A cor da
pele condiciona. A cor da pele torna seres humanos em coisas
transparentes, sem valor, sem direito à vida.
Numa reportagem, em fevereiro, chamei-lhe o Aylan invisível.
Agora, mostro-te, escrevo sobre ti, Hayat, porque estou farta de
indiferença, de hipocrisia, de quem assobia para o lado e só dá
importância ao que não interessa. Aqui, não interessa se morrem 6.000 ou
6.001.
Não quero que sejas invisível.
Gostava tanto de saber de ti.
Madrid, 24 de julho de 2017
IN "RTP"
25/07/17
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