Matias Damásio
une Portugal a Angola
com as palavras de Camões
É possível que um verso de uma canção tenha feito mais pela renovação
de mentalidades em Portugal do que muitos discursos. Já todos o
ouvimos, anda, ainda, a tocar milhares de vezes na rádio e tem mais de
30 milhões de visualizações no YouTube. É o primeiro verso da canção Loucos,
aquela com que o cantor angolano Matias Damásio entrou definitivamente
no mercado português. É assim: «Camões não inventou palavras para
exprimir esse momento…»
A batida é forte, não engana, soa a kizomba, e dali a pouco Damásio
vai passar a usar formas verbais que mostram toda a africanidade do seu
som, além de vogais mais surdas, claro. Mas lá está, a homenagem ao
poeta maior da língua portuguesa, a abrir a canção. E a mudar o mundo. O
nosso mundo.
É o próprio Matias Damásio quem dá conta disto. Quando lhe
perguntaram que melhor elogio lhe fizeram em Portugal, ele conta a
história curiosa de uma mulher de uns 70 anos que lhe disse: «Filho, não
gosto de música africana nem de kizomba mas quando ouvi um preto a
falar “Camões não inventou palavras” descobri que era um preto que
tínhamos de seguir.»
E está lá tudo, nesta frase. É comovente e encantadora, dramática e
cómica. E mostra-nos o mundo como ele é. Sem pieguices, sem parvoíces,
sem ideologias e preconceitos a ensombrar o pensamento. Com ela cai por
terra a discussão do racismo latente que anda por aí – ou andava, que na
rapidez internética, já passou, já passou. Anulam-se as diferenças. E
vem ao de cima aquilo a que Matias Damásio há de voltar a referir-se
nesta entrevista – o que nos une, além e aquém do que nos separa.
Matias Damásio não é sociólogo nem político, é um artista. Sim, é
verdade, é um artista que sabe o que neste momento vale para ele o
mercado português. Mas é também nessa sua condição que o que ele conta
ganha tal importância. No mundo real em que as suas canções são ouvidas,
as coisas são diferentes da realidade que aparece nos jornais. Gente
que as ouve e trauteia e, nessa simplicidade, adota um mundo que fala
português e vai além das fronteiras. E gente que repara que é um
angolano que homenageia Camões.
Matias irá dar mais dados para esta tese ao contar da sua infância em
Benguela, cidade mestiça da costa angolana: «Sou de uma geração em que
já havia, de novo, muitos portugueses em Angola. Portugal era o sonho.
Amigos que tinham vindo para Portugal mandavam fotografias tiradas em
pontes, roupa e ténis muito bonitos e essas eram as referências que
tínhamos. Referências de sonho.»
E remata, com realismo. «Mas uma das coisas mais bonitas que
aconteceu ao meu país foi essa capacidade de recomeçar, sem medo de
errar. E sem nunca se render. Termos tirado os portugueses do nosso
caminho para recomeçarmos foi muito bom.» Teríamos tanto a aprender
ouvindo mais Matias Damásio e menos discursos inflamados e
artificialmente ideologizados.
IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
31/07/17
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