Necrofilia, incêndios
e falta de decência
A morte em vez da inteligência e a morte como espetáculo têm dominado uma boa parte do discurso mediático sobre incêndios
Quando Millán-Astray, o selvagem e necrófilo general
franquista, invetivou Unamuno gritando “abaixo a inteligência, viva a
morte!”, não podia decerto imaginar como tal proclamação poderia, mesmo
que em circunstâncias diferentes, convocar tantos seguidores.
Quando Juvenal, no ano 100 d.C., ironizou sobre a forma como os então
responsáveis políticos de Roma manipulavam a vida cívica, substituindo a
discussão séria sobre os problemas reais da cidade por “pão e circo”
para o povo, não podia também prever como tal ardil subsistiria até aos
dias de hoje.
Nesse tempo, recordemos, o “circo” enaltecia também a morte e fazia dela um espetáculo popular.
Quem hoje vê e lê a nossa comunicação social, os discursos que
veicula, os comentários que difunde, as pequenas reportagens das
tragédias realizadas no momento e no local, compreenderá como, afinal,
tais estratégias de comunicação se enraizaram e continuam a ser úteis.
A morte em vez da inteligência e a morte como espetáculo, para
esconder a discussão séria dos problemas que, criminosamente, a causam,
têm dominado, de facto, uma boa parte do discurso mediático e político
dos nossos dias sobre os incêndios.
Hoje somos, na verdade, confrontados com a mais primária e
despudorada estratégia de comunicação: um plano que procura comandar ou
descomandar a nossa inteligência e a nossa atitude cívica ante uma
tragédia com causas profundas e antigas, e consequências dramáticas.
Que algumas das vítimas se prestem a encenar pequenos sketches
perante as câmaras da TV, quase convertendo em paródia aspetos trágicos
da sua existência, é, na verdade, lastimável.
Mas é lastimável sobretudo para os profissionais da comunicação que a
isso as incentivam e delas se aproveitam, transformando o seu desespero
real em pobre arte circense, para gáudio e uso e abuso político de uns
tantos.
O despudor imoral de toda esta mistificação deveria provocar a mais
gritante indignação de todos quantos têm da intervenção cívica uma
visão, não digo elevada, mas decente.
A situação de anomia pública a que chegámos nem sequer permite que essa necessária indignação se expresse.
Muitos – e de todos os quadrantes – a quem verdadeiramente caberia transmiti-la parecem ter-se demitido de o fazer.
Os poucos que o tentam ou são silenciados pelos meios de comunicação ou, pior, são por eles enxovalhados na arena mediática.
Alguns, raros, ainda tentam resistir; outros, vexados, claudicam e
deixam, quais “prima donnas” inexperientes, o espaço público àqueles que
justamente tentaram denunciar.
As instituições públicas, mais do que criticadas pelo seu desempenho,
são mediaticamente achincalhadas, sem dó nem piedade, pelos “cães que
ladram pelas vozes dos seus donos”, como dizia o poeta catalão Fèlix
Cucurull.
O que releva é desautorizá-las, pois, em algum momento, elas podem,
ainda assim, resistir à demagogia e refletir a verdade que incomoda.
Perante o óbvio desmascaramento de falsas situações noticiadas com
estrondo, nenhum órgão de comunicação social que delas se fez eco se
autocritica e nenhum profissional dos media que delas fez alarde parece
sentir qualquer vergonha pelo papel que, nessa artimanha, lhe coube
desempenhar.
Preferem, por isso, entrevistar-se uns aos outros, justificando-se
mutuamente com uma indulgência que não aplicam àqueles que lhes
ordenaram enxovalhar.
Talvez por isso, como em artigo recente do “El País” se dava conta, o
jornalismo comece hoje a ser olhado, mais do que como um instrumento
necessário da democracia, como um instrumento de dominação, apenas útil à
manutenção do statu quo.
IN "i"
08/08/17
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