28/08/2017

ANA RITA GUERRA

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A sabedoria das multidões

Não podendo nós pôr rolhas em todo o discurso que consideramos ofensivo, podemos pelo menos decidir qual é o limite da tolerância.

Em Boston, as igrejas têm faixas à entrada dando as boas-vindas a imigrantes e refugiados. Há bandeiras arco-íris penduradas em postes e casas, simbolizando solidariedade com a causa LGBT. A cidade é diversa e acolhedora, casa de tantos imigrantes portugueses e de outros cantos do mundo. Só isso explica porque é que uma manifestação marcada este fim de semana por ativista de direita reuniu apenas 40 pessoas – mas do outro lado apareceram 40 mil contra manifestantes.

Houve ali, certamente, alguma confusão. Os manifestantes originais quiseram defender algo que acham que está a ser atropelado nos Estados Unidos e é muito querido ao povo americano, protegido pela Primeira Emenda – a liberdade de expressão. Os contra manifestantes entenderam que seria um protesto de neonazis, os mesmos que estão por detrás do ressurgimento do KKK e da alt-right, um eufemismo simpático para a extrema-direita americana.

O Facebook, Twitter, YouTube e outros gigantes da Internet apressaram-se a expurgar quaisquer indícios destes supremacistas brancos, depois de muito tempo a assobiarem para o lado. O site “Daily Stormer” teve de se ir alojar num servidor russo depois de ser expulso de todo o lado nos Estados Unidos, pelos seus artigos de extrema-direita inflamados. Muitos participantes da violenta manifestação neonazi de Charlottesville estão a ser identificados num esforço coletivo de crowdsourcing e a perderem os seus empregos ou a serem corridos das suas comunidades. Na era de Trump, os neonazis consideram que podem assumir-se publicamente. Mas na era do Twitter, quem não usa máscaras será identificado. Eis o dilema com que os liberais (de esquerda e de direita) se veem confrontados neste momento: devem defender a tolerância a todo o custo, mesmo quando isso abre as portas a fenómenos perigosos como a alt-right, ou ser intolerantes perante os intolerantes? Devem deixar que a alt-right faça manifestações de supremacia branca, que recrute mais elementos para a sua “luta”, ou pôr-lhes uma rolha como fizeram os alemães, indo contra o princípio da liberdade de expressão que está plasmado na Constituição?

A escolha é difícil e controversa. Qual é o limite da liberdade de expressão? Não estamos aqui a falar de ofensas verbais ou trolls em sites da Internet. A manifestação de Charlottesville resultou numa morte e dezenas de feridos; da retórica à violência foi apenas um passo. Os ataques e incidentes racistas – contra judeus, hispânicos e outras minorias – dispararam desde a eleição de Donald Trump. Não se trata apenas de uns comentários no Twitter; este ressurgimento da supremacia branca na praça pública tem efeitos reais, e perversos, sobre a vida das pessoas. É liberdade de expressão? Ou um ataque aos direitos individuais mais básicos?

Aquilo que se viu em Boston foi uma manifestação brilhante da liberdade de expressão, ainda que os manifestantes originais não fossem neonazis, como se temia. A sabedoria das multidões, por vezes, é imensa. Se há algo que a eleição de Donald Trump conseguiu despertar na população americana foi a consciência de que a apatia é perigosa. Os eventos trágicos que sucederam em Charlottesville, a reação incompreensível do Presidente Trump e a rejeição a meio-gás que os membros do partido Republicano fizeram dessa reação resultaram num ponto de inflexão que poderá determinar o resto deste mandato. O controverso estratega da Casa Branca, Steve Bannon, foi afastado por Trump – provavelmente não porque o Presidente se apercebeu de repente de que ter um supremacista branco por perto era mau, mas porque Bannon se tornou demasiado mediático. Bannon regressou de imediato ao site da alt-right Breitbart, e está a preencher a sua lista de inimigos a abater. Vem aí uma avalanche de ataques implacáveis usando, precisamente, a liberdade de expressão que lhes assiste.

Não podendo nós pôr rolhas em todo o discurso que consideramos ofensivo nem exterminar as notícias falsas com sites de fact-checking, podemos pelo menos decidir qual é o limite da tolerância. Se isto acontecesse no final dos anos 30 do século passado, muitos defenderiam que Hitler tinha direito a expressar a sua opinião sobre a raça ariana. Não se pode deixar a História repetir-se.

IN "DINHEIRO VIVO"
22/08/17

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