25/07/2017

SAFAA DIB

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A condição humana na sua TV

As nossas noções de bem e mal, outrora presas a uma linearização excessiva, são atualizadas à medida que vamos ficando cada vez menos ingénuos e chocados com o enredo que nos é apresentado.

Poucas coisas entraram de forma tão fulminante na cultura popular como A Guerra dos Tronos. À semelhança de fenómenos como O Senhor dos Anéis ou Harry Potter, a saga de George R. R. Martin conseguiu consolidar a sua popularidade e entranhar-se no nosso vocabulário quotidiano.

O termo “Guerra dos Tronos” tornou-se sinónimo de intriga e manipulação política. Os protagonistas têm hipóteses reduzidas de sobreviver ao jogo de disputas pelo poder, e grande parte do enredo consiste em mover as peças do xadrez bélico e político de forma inteligente e implacável.

Habituados a histórias tradicionais, em que o herói triunfa no fim da sua jornada ou se sacrifica valorosamente pelo mundo, os leitores e espectadores foram apanhados de surpresa pela disponibilidade do autor em matar os seus protagonistas da forma mais inglória ou injusta possível. Ao longo das várias temporadas (e livros), assistimos a decapitações, envenenamentos, casamentos vermelhos, massacres, torturas e um sem fim de guerras em contexto medieval, com a introdução gradual de elementos de fantasia, tais como dragões e mortos-vivos.

Mas o lado fantástico de A Guerra dos Tronos está longe de ser a sua maior força. Esta reside no lado humano e no modo como as personagens revelam os seus conflitos interiores, que tanto tem cativado o mundo inteiro. Através de diálogos inesperadamente profundos, descobrimos que não há uma verdadeira separação entre o bem e o mal. Um regicida pode demonstrar sentido de honra, assim como um cavaleiro nobre pode agir com a maior cobardia. Cada indivíduo faz as suas escolhas, que poderão ser ditadas pela ganância, honra, ambição, amor.

Sendo de inspiração medievalista, a série não deixa de criar um retrato convencional das relações entre casas nobres e plebeus. Mas a dinâmica tem vindo progressivamente a mudar em relação ao papel dos géneros. E se é verdade que as mulheres sofrem sempre às mãos dos homens, agora são elas quem revela maior astúcia, perspicácia e pragmatismo.

No fundo, resume-se à subversão das expectativas. A estratégia política de uma brutalidade ímpar desperta interesse, mas o facto de a série não cumprir as vontades e os desejos do público é parte do que a torna tão especial. No entanto, o mundo de Westeros, o continente fictício onde decorre grande parte da narrativa, vai buscar inspiração às guerras que dominaram a Europa durante séculos. Não há nenhum ato de crueldade que não tenha sido baseado em factos verídicos. As nossas noções de bem e mal, outrora presas a uma linearização excessiva, são atualizadas à medida que vamos ficando cada vez menos ingénuos e chocados com o enredo que nos é apresentado. Passámos a assistir pela televisão ao real retrato da condição humana e tem sido, sem dúvida, uma lição incrível.


IN "O JORNAL ECONÓMICO"
21/07/17

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