O aborto clandestino
continua a matar
milhares de mulheres
Brasília, Maio de 2017. É aprovado um projeto de lei que pretende
obrigar as vítimas de violação a terem de ver imagens do feto, mês a
mês, antes de avançarem para a possibilidade de aborto (que só é
permitido naquele país em casos de anencefalia do feto, de violação ou
quando a gestação é um risco para a vida da mulher). El Salvador, Junho
de 2017. Uma mulher dá à luz uma criança sem vida, num parto feito sem
condições. A gravidez foi resultado de uma violação. O seu atacante não
foi preso pelo crime de abuso sexual, mas a mulher recebeu uma sentença
de 30 anos de prisão pelo aborto espontâneo, uma vez que não procurou
ajuda médica imediata mal teve as primeiras contrações. Tinha, alegou a
acusação, intenção de matar a criança. Arkansas, Julho de 2017. Entra em
vigor uma nova lei que apenas permite a mulher fazer um aborto caso
tenha autorização por escrito do homem que a engravidou, incluindo em
casos de abuso sexual ou de relações abusivas.
Mundo fora, são
muitos ainda os países, mais ou menos desenvolvidos, onde a interrupção
voluntária da gravidez continua a ser um tema absolutamente tabu, e
contemplado como crime. Mas não é isso que o torna menos comum. Os casos
que relato em cima são apenas três, de uma imensidão de histórias e
decisões macabras relacionadas com este tema. Milhares de mulheres
continuam a ter de abortar às escondidas, em clínicas clandestinas, sem
condições básicas e em situação de total vulnerabilidade. Muitas
(demasiadas) morrem no processo, muitas outras são perseguidas e presas
pela sua escolha. Uma verdadeira caça às bruxas, que permanece como um
atentado à dignidade e direito de escolha, individual, segura e em
consciência, da mulher sobre o seu corpo.
IVG em Portugal: dez anos depois da despenalização
Na
semana passada, na Cimeira de Londres para o Planeamento Familiar,
falava-se do facto de em todo o mundo existirem mais de 214 milhões de
mulheres sem acesso a métodos contraceptivos modernos, algo que estava
diretamente relacionado com mais de 700 mil gravidezes indesejadas de
jovens raparigas. Raparigas que acabam por ter de abandonar a escola e
ficar em situação de fragilidade familiar, por exemplo, algo que condena
as suas vidas, à partida. Tal como o estigma social. Para muitas, a
possibilidade de um aborto é uma miragem, mesmo que as gravidezes
resultem de situações de abuso sexual. Quanto à sua vontade, isso nem
sequer entra na equação. Para outras é uma sentença de morte: um estudo
da Fundação Bill e Melinda Gates mostra que, só em 2015, 15% do total de
mortes em contexto de maternidade estavam relacionadas com complicações
em abortos clandestinos.
É impossível tudo isto não nos dar que pensar, principalmente quando
temos à nossa frente o resultado prático de 10 anos de despenalização da
IVG em Portugal: desde 2007, o número de abortos e reincidências
baixou, até mesmo entre as jovens com menos de 20 anos. Por outro lado,
aumentou o número de mulheres que recorrem a consultas de planeamento
familiar e a métodos contraceptivos após uma IVG.
Aliás, no que diz
respeito a abortos, Portugal encontra-se atualmente abaixo da média
europeia. E os casos de mortes por abortos mal feitos praticamente já
mal existem por cá.
Trinta e três anos após o 25 de abril, a
despenalização do aborto foi levada a referendo e os portugueses fizeram
a sua escolha, uma escolha que se revelou acertada, com todos os
indicadores atuais a comprovarem-no. Mas mesmo assim, ainda em 2015 se
voltou a tentar mexer nesta lei, um sintoma claro do desconforto que tal
tema ainda gera por mais que os resultados desta despenalização sejam
positivos. Tal como é um sintoma preocupante que, como avançava a
agência Lusa na semana passada, ainda haja cerca de 500 mulheres
portugueses que todos os anos vão a clínicas espanholas para realizarem
este procedimento. Muitas delas em busca de uma maior sensação de
confidencialidade, algo que deverá tornar menor o estigma. Mais uma vez,
o estigma.
Abortos clandestinos: 47 mil mortes por ano
Lembro-me
de, em 2015, um estudo levado a cabo pela Escola de Medicina da
Universidade de São Francisco, na Califórnia, ter dado que que falar por
causa deste resultado: depois de acompanharem, durante três anos, mais
de 600 mulheres antes e após fazerem um aborto, concluíram que 95%
daquelas pessoas não se arrependeram da sua decisão. A esmagadora
maioria sentia que tinha tomado a opção acertada e não se sentia culpada
por isso. Ironicamente (ou não), a única coisa que realmente as fez
sentir recorrentemente mal durante todo esse processo foi o estigma
ainda presente na sociedade. Aos olhos do universo onde estão inseridas,
elas deveriam sentir vergonha da sua decisão.
Há uns dias li a
as palavras de amigo obstetra, que citava a sua colega Manisha Kumar, da
organização Médicos Sem Fronteiras: “Todos os anos morrem cerca de 47
mil mulheres com complicações relacionadas com aborto ilegais. Este
número é maior do que a totalidade de mulheres e crianças que morreram
no conflito sírio nos últimos seis anos. É maior do que o número total
de pessoas que morreram com Ébola”. Estas comparações valem o que valem,
mas têm o condão de nos pôr a pensar. Até quando vamos deixar que
milhares de milhares de mulheres morram anualmente por serem privadas de
um direito de escolha digno, seguro e legal sobre o seu corpo?
IN "EXPRESSO"
17/07/17
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