Lenços de seda
Uma resposta que mereceu o louvor da professora porque, disse com propriedade, "efectivamente, as leis da física ditam a vitória, numa prova de gravidade, de uma perna maciça, como a do Valdemiro, sobre um antebraço ou qualquer outro membro mais pequeno e leve". Ninguém suspeitou daquele suspiro
Treinava-se muito na recruta dos heróis, essa brincadeira de crianças
habituadas a acordar com notícias sobre o avanço das tropas. Cabinda,
Nambuangongo, mata do Maiombe, Chimbete, Kwanza, Angola é nossa, turras,
palavras ainda distantes das crianças de 61, a grande reserva de mortos
do Império. 11, 12, 13 no máximo, toda a vida pela frente quando se
julgava que para trás ficava o jardim do infantário e à frente as
grandes expedições do adultério. Somos muitos, basta ver naquelas
romarias até ao cais quantos levam o Vera Cruz, o Santa Maria e as
criancinhas a infernizar as mães - quero ser grande e ir para a guerra,
quero ser grande e ir para a guerra -, sem saberem que, por maior que
fosse o homem, gastavam-se fortunas para emoldurar o trabalho do
retratista, uma fotografia de corpo inteiro antes que o Estado fizesse
do bastardo meio irmão, meio filho, meio corpo, meia pensão.
Mães,
avós, tias, primas, namoradas, noivas, amantes e os soldadinhos, alguns
que nunca privaram muito com mar, ilhéus que só sabem afogar-se,
prontos para a despedida. Há deles instruídos pela família, pelo cruel
silêncio da família, pelo abraço do pai porque é o próximo da fila, a
deixarem-se ficar para que sobre pão na mesa. Um filho útil, pelo menos
um, que obrigue o Cerejeira a bater-me continência com a mesma
reverência que me paralisou o braço direito e forçou-me a educar a
canhota para educar esta cambada. Se não for pedir muito, filhinho
querido, que o Cónego Roseira ainda esteja capaz de celebrar o teu
funeral. Foram muitos anos a engolir aquelas boquinhas na missa, do bla
bla que a mão direita não saiba o que faz a esquerda. Hão-de pagar
todos, justiça me faças.
Regressavam os rapazes a casa, 62, 63, e
continuávamos a ganhar a guerra. Numa ou noutra ocasião solene, o
carteiro trazia notícias de um primo que antes ajudava no tpc e
continuou a ser muito útil quando a professora tinha a palmatória pronta
para quem não cumprisse os requisitos da hipérbole. "O meu primo
Valdemiro é paraquedista e aterrou, ao mesmo tempo, em imensos lugares
num raio de mil metros, sensivelmente". Uma resposta que mereceu o
louvor da professora porque, disse com propriedade, "efectivamente, as
leis da física ditam a vitória, numa prova de gravidade, de uma perna
maciça, como a do Valdemiro, sobre um antebraço ou qualquer outro membro
mais pequeno e leve". Ninguém suspeitou daquele suspiro, muito menos da
escusa por indisposição súbita, mas a professora recordava-se demasiado
bem da emergência com que o Valdemiro aterrava na educação visual e se
empenhava no estudo do meio.
Foi-se o Valdemiro, ganhou-se um aluno que foi progredindo na escola até
aprender a detectar a imprecisão dos matemáticos do Ultramar que davam
todos por esquartejados, quando não era líquido que o Napalm só
dividisse alguém em quatro. 66 e os magriços, Torres de atalaia, o
Simões a sentá-los, Coluna de um Império que não se verga, que marcha
contra os bretões até que uma rádio entra nos descontos como se o
Eusébio rematasse do Minho até Timor. 67, 68, ai de nós sem Salazar, mas
a nossa vitória é contínua e os rapazes agora de barba e outras coisas
rijas a amadurecerem para a vindima da Pátria. 69 e já se sabe que isto
dá muitas voltas, amor, mas vem aí 70, a recruta para ser o melhor a
amar-te em desespero, a desaparecer sem deixar rasto, recordista do
lançamento do pulmão. 71 a 73 vai ser de perder a cabeça por ti,
desgraçado poeta do óbvio, rapaz educado que deixou à namorada um lenço
de seda. – O que é isto? – , surpreendida por ver no lenço uma gota de
sangue. – É o mapa de Angola, meu amor.
Uma questão de tempo até
à capitulação deles, diziam uns e outros. É só esperar um pouco mais
até à rendição absoluta, ajude-nos o vento. Esvoaça a ridícula bandeira
vermelha que fora branca, retirada à pressa de um qualquer sítio por
onde não devia sair o almoço. A miopia, o daltonismo, razões legítimas
para não o inimigo não distinguir a assinatura inimitável de um homem
que tinha bom interior, agora estragado numa bandeira que era branca.
Não arrancava o vento, o que só piorava a situação de quem estudou com
zelo as regras da guerra. Há regras para matar, para dosear o sal e
atenuantes para quem mata de novo os mortos, habituado que estava a
ouvir o morto gritar "morri" no recreio da escola.
Nem bandeira
era, antes um lenço que alguém levou para manter a educação de casa em
qualquer situação. Nunca se sabe das horas do corpo, filho. Um espirro
seguido de perdão, um perdão seguido de santinho, um santinho seguido de
grito, de gritos, de pânico, médico, médico, médicooooo porra, socorro,
o coro da companhia que ainda há pouco entoava o hino, mão no peito e
agora demasiadas mãos para o pouco tronco do camarada, o camarada mais
educado de todos que envergonha a Mãe sem um lenço para acomodar o
espirro do estômago, a rajada do ventre, a pressa de um coração que tem o
desplante de se abrir ao mundo como se cumprisse a metáfora gasta dos
maus poetas. A julgar pelo esguicho, a jugular deu de si, mas ainda há
força para golfar uns bocábulos – no bolso das calças, no bolso das calç
–, e corre um camarada para trazer a perna – não é essa, não é – e
corre outro camarada que encontra a perna certa por exclusão de partes,
mas já é quase tarde quando alguém encontra os lenços de seda bordados
pela Mãe e pouco mais há a fazer do que cosê-los, formar uma bandeira
que passe por branca, esperar que o vento nos ajude. E que aquele sacana
veja bem como se debruçam os camaradas sobre um rapaz que sussurra
"digam à minha Mãe que o nariz esteve sempre limpo."
- Os alvos estão imóveis. Abrir fogo e siga para casa porque hoje é sexta-feira santa.
IN "SÁBADO"
23/05/17
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