Cinema
Chegou Paula Rego – Histórias e Segredos do filho Nick Willing, para ficarmos todos siderados. Um documentário, que conta a história da pintora, através das suas confissões mais íntimas e dos testemunhos das pessoas mais próximas
Depois de tantos anos sem cinema na baixa do Porto, é muito bom ver o
Trindade e o Passos Manuel, de salas abertas e cheias de público. E,
sobretudo, é muito bom ver filmes marcantes, semana após semana, como
nas últimas.
Primeiro chegou São Jorge de Marco Martins e Nuno
Lopes, para registar os anos da Troika e fazer aquilo que poucas vezes o
cinema faz por cá – contar a História. Não que contar histórias seja
menos importante, mas faz falta contar a história-com-hagá-grande, para
que a memória fique bem viva e honremos a vida real.
São Jorge é
um filme brutal (em todos os sentidos), que conta a vida de um
pugilista, desesperado pela pobreza, que se vê obrigado a trabalhar numa
empresa de cobranças difíceis, para poder sustentar o filho. Uma
descida às profundezas da austeridade em Portugal, para mostrar as
marcas da aflição, causada pelas falências, pelos despedimentos, pelo
crédito malparado, mas sobretudo pela falta de esperança.
Também
é um importante retrato da vida nos bairros sociais e nos bairros
clandestinos que restaram às minorias. Para lembrar que vivemos em
cidades segregadas, num país com graves problemas de acesso à habitação e
de grande pobreza, com um salário mínimo baixíssimo, com o qual se é
pobre mesmo tendo trabalho. São Jorge é obrigatório, para cristalizar em
filme o desespero da última década, como um monumento erigido aos
pobres que ficaram mais pobres, enquanto os ricos ficavam mais ricos e
se tentava a todo o custo delapidar o Estado Social.
Depois
estreou Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, com Sónia Braga no auge da
sua beleza cinematográfica. Filmado com um thriller, há uma tensão
permanente que vai cercando a personagem. Uma jornalista reformada, que
vive sozinha num apartamento em frente ao mar e que, viúva, mãe de
filhos já criados e sobrevivente de um cancro, se vê pressionada a
vender a sua casa, por uma empresa do ramo imobiliário que quer demolir o
prédio para construir um arranha-céus. É o último edifício da marginal
que sobreviveu à fúria da construção em altura.
Clara torna-se o
símbolo da resistência. Fazendo questão de ficar na casa onde se sente
em casa, onde viveu o seu casamento, onde criou os seus filhos, onde
guarda as suas memórias e mantém as suas rotinas. Uma mulher madura,
orgulhosa das suas cicatrizes, de uma altivez a toda a prova e de um
feminismo fundador que a torna inabalável. Uma mulher que recusa a
solidão, a vitimização e a intimidação, definindo-se por uma grande
solidez e independência. Uma heroína, com a majestade de Nefertiti, no
corpo da insígnia maior do cinema brasileiro e da beleza mestiça da
mulher sul-
-americana.
Por último, chegou Paula Rego – Histórias
e Segredos do filho Nick Willing, para ficarmos todos siderados. Um
documentário, que conta a história da pintora, através das suas
confissões mais íntimas e dos testemunhos das pessoas mais próximas. A
relação terna com o pai, o casamento com Victor Willing (seu grande
amor), a forma distante como criou os filhos e as suas profundas
depressões são os temas centrais do filme. Mas o seu trabalho é o
elemento fundamental.
O trabalho é o exorcismo para todos os
demónios interiores. Um espaço de liberdade, de digestão, de desabafo,
onde espalha as vísceras desbragadamente, assumindo a loucura, a dor e a
vergonha.
(Porque sem vergonha, não seria um ato de coragem). É a sua
rebeldia contra os condicionamentos culturais, numa sociedade machista e
conservadora, e contra o seu temperamento contido e até submisso. É o
seu interface com o mundo, a sua forma de intervir politicamente, a sua
oportunidade de mudar o passado. E, além disso, o âmbito da sua relação
com Victor. Um mundo dela, que só ele compreendia e sabia descrever. “O
trabalho é o mais importante da vida” disse Paula Rego ao seu filho
Nick, com um sorriso de criança-sábia-de-oitenta-anos. “Ainda bem que te
disse isso!”.
E ainda bem que assim tem sido (por todos nós).
IN "VISÃO"
20/04/17
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