Uma questão de perfil
Homens que bateram em homens. Homens que bateram em mulheres.
Homens que beberam e bebem... Quantos deixaram de ser convidados para
comentar, apresentar e trabalhar por causa disso?
.
.
Tenho seguido com estupefacção as notícias sobre o julgamento que
opõe Bárbara Guimarães a Manuel Maria Carrilho. Sobre o julgamento em si
mesmo limito-me a escrever que confio na Justiça ou mais
apropriadamente que me resigno a aceitar o que a Justiça decida porque,
por mais desrazoadas que frequentemente me pareçam as decisões tomadas
pelos tribunais, na verdade não existe forma mais civilizada de
resolvermos os nossos conflitos.
Feita esta ressalva passemos ao que me interessa e preocupa. Ou seja
às consequências que este julgamento pode vir a ter na decisão de outras
mulheres em não denunciarem a violência física e psicológica que
sofrem. Afinal quem está preparada para aguentar uma devassa total da
sua vida privada e o impacto que essa devassa pode ter na sua vida
profissional?
Note-se que o discurso sobre a chamada violência doméstica (tal como
sobre o aborto) está imbuído de um imaginário neo-realista: mulheres
economicamente dependentes dos maridos, rodeadas de gente reaccionária
que lhes repete que se devem resignar para salvarem os seus papéis de
esposa e mãe. A completar o retrato, estas mulheres são invariavelmente
apresentadas como destroçadas e precocemente envelhecidas. As mulheres
para serem vítimas têm de ter os olhos desesperados das mães perdidas
num qualquer cenário de guerra, o despojamento da Pietá e o percurso
irrepreensível nos actos e nas palavras de um candidato à santidade nas
religiões conhecidas e por conhecer. Basta haver um reparo, um senão (e o
senão aparece sempre) para que de vítimas passem não necessariamente a
vilãs mas a vítimas mais que anunciadas dos erros cometidos por si
mesmas.
É precisamente no desencontro entre a vítima real e o seu retrato
oficial que se agrava o calvário de mulheres como Bárbara Guimarães que
não só não é pobre como não é anónima e muito menos feia. O dinheiro, a
celebridade e a beleza têm um reverso na imagem que se cria das
mulheres, um reverso de que poucos falam mas que todos conhecem: mal os
problemas acontecem é como se estivéssemos a assistir a uma espécie de
correcção da desigualdade na distribuição da beleza e a uma expiação do
pecado do excesso seja ele do dinheiro que se possui ou do protagonismo.
Assim, por exemplo, acaba a surgir quase como inevitável que as mesmas
empresas que antes pagavam regiamente a Bárbara Guimarães para promover
os seus produtos agora rescindam os seus contratos com ela.
Curiosamente vemos como jornalistas, senadores, apresentadores,
humoristas e artistas, homens que bateram em homens. Homens que bateram
em mulheres. Homens que se drogaram e drogam.
Homens que beberam e
bebem. Homens que tiveram divórcios com episódios perturbantes. Homens
que atingem as raias da loucura e da boçalidade por causa de uma coisa
tão simples quanto o rolar de uma bola num relvado… E tanto quanto me
recordo nunca ocorreu a alguém deixar de contratá-los, de aplaudi-los,
de convidá-los ou de ouvi-los por causa desses factos.
Seja qual for a posição que se tome sobre este caso duas conclusões
podemos já tirar. A primeira é que ele está a cobrar uma factura elevada
na vida profissional de Bárbara Guimarães. A outra conclusão é que essa
factura será tão mais acrescida quanto a mulher menos se aproximar
daquilo que a sociedade e muito particularmente os activistas dos
direitos disto e daquilo têm como o perfil da vítima. E para o fim uma
pergunta: perante o que está a acontecer neste caso quantas mulheres não
acabam a concluir que o melhor é aguentar e calar? Por todas as razões
de outrora — casamento e filhos — e também para salvarem as suas
carreiras.
IN "OBSERVADOR"
26/02/17
.
Sem comentários:
Enviar um comentário