Daniel and Katie
O neoliberalismo destruiu direitos sociais e construiu, nas mesmas instalações e com nomes de Estado Social, instrumentos para fazer de quem trabalha gente sem voz nem vida
Era carpinteiro. Foi o que fez a vida toda. Um dia, teve o azar da
máquina falhar e quase foi de vez. Foi aí que o calvário teve início.
Não tem condições físicas para trabalhar, quem lho diz é a sua médica.
Opinião diferente tem a multinacional subcontratada para fazer a
avaliação e tratamento processual dos requerimentos de subsídio de
doença e desemprego.
É convidado a despedir-se e encontrar emprego.
Pode recorrer da decisão, sim, mas apenas via online. E tem de esperar
que lhe telefonem, a informar oficialmente que não tem direito a
subsídio de doença. É já oficial, mas ele só pode recorrer quando lhe
telefonarem. Pode telefonar? Não, tem de esperar.
Katie chega
atrasada com as duas crianças pela mão, tenta explicar que acabou de
chegar à cidade e se enganou no autocarro, mas não adianta grande coisa,
o que tem de mais certo é uma sanção. Vivia com os filhos num asilo
para pessoas sem-abrigo, agora oferecem-lhe uma casa a 480 km da sua
família, pegar ou largar.
O cenário é Newcastle, nordeste de
Inglaterra, “mas podia ser em qualquer outro canto do país”. É o
realizador Ken Loach quem o diz. Acrescento eu: Ou em qualquer outro
canto de um qualquer país europeu, em que pegou moda a ideia neoliberal
de que proteção social não é um direito social, mas antes favor que se
pratica a preguiçosos e aldrabões.
A primeira cena começa e somos
logo esmagados pela vida de Daniel e Katie. De repente, imaginamos que
podia ser um de nós. Vêm-nos à cabeça as pessoas que conhecemos e já
foram confrontadas com situações semelhantes. Gente que é velha demais
para trabalhar e nova demais para se reformar. Pessoas que foram
humilhadas quinzenalmente, por este país fora, em salas de centro de
(des)emprego quando ouviam:
“Os desempregados é para esta fila”.
“I,
Daniel Blake” é um murro no estômago, bem dado.
O filme de Ken Loach
dá corpo à humilhação vivida na realidade por tantos milhares de
pessoas. Mulheres e homens que são forçados “a procurar empregos que não
existem só para as humilhar”, pessoas que quando mais precisavam de
apoio e esclarecimento “andam em círculos”, nas teias de um sistema
deliberadamente burocrático, feito para tornar as coisas tão
insuportáveis até que desistam. Um sistema que é feito para perpetuar a
miséria e a desigualdade. O neoliberalismo destruiu direitos sociais e
construiu, nas mesmas instalações e com nomes de Estado Social,
instrumentos para fazer de quem trabalha gente sem voz nem vida.
Teias
desumanizadas para cumprir objetivos de redução da “despesa social”,
onde a frieza no trato pelos profissionais é imposta hierarquicamente,
as pessoas são números e as suas vidas logaritmos de défice, atendíveis
exclusivamente via eletrónica. Este sistema cuja lógica assenta na
humilhação, propaga a ideia de que quem num determinado momento precisa
de proteção social é um inútil e incapaz, que não foi suficientemente
empreendedor para se adaptar à lei da selva.
E ao longo do
filme, por diversas vezes, Loach coloca Daniel e sobretudo Katie, a mãe
solteira nesse papel, enfrentando esse dilema de consciência. Aliás,
reconheceu essa deliberada intenção, quando numa entrevista recente
afirma que “há uma questão ideológica por detrás disto: tudo está feito
para que as pessoas interiorizem que, se estão desempregadas, é culpa
delas, se são pobres, é culpa delas”.
Como se fosse possível
atribuir a responsabilidade do desemprego individualmente, desligando
isso de opções políticas estruturais – a desindustrialização, a
financeirização da economia, o empobrecimento e concentração da riqueza,
afinal o mecanismo da exploração, a natureza do capitalismo, seja qual
for a sua versão, no século dezanove, no século vinte ou na
propagandeada versão digital do século vinte e um.
Ken Loach é um
cineasta extraordinário, um corredor de fundo daqueles que não desiste
da realidade humanista e a coloca em movimento de forma incrivelmente
dura. Porque a vida real de milhões de pessoas assim o é, dura. Nesta
Europa que vendem como estandarte da coesão social, mas que alimenta
bancos e espezinha a dignidade humana.
“I’m not a client, a
customer, nor a service user. I’m not a shirker, a scrounger, a beggar
nor a thief. (…) I, Daniel Blake am a citizen, nothing more nothing
less. Thank you”.
IN "VISÃO"
13/01/17
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