Eutanásia: debate
ou
batalha de preconceitos?
A eventual despenalização da eutanásia tem de ser o resultado de um debate amplo, profundo, tolerante
Se há assunto relativamente ao qual, muito mais do que com
inabaláveis certezas, parto com verdadeiras perplexidades, esse assunto é
a eutanásia.
Parto para o debate, não o escondo, a partir de uma
posição tendencialmente favorável à despenalização da eutanásia. Essa
minha posição de partida radica na crença na primazia do valor da
liberdade individual. Acredito que esta é uma matéria do domínio do
privado no seu sentido mais profundo e mais radical. Reclamo o direito a
dispor da minha liberdade sempre que ela não contenda com a liberdade
de mais ninguém. Reclamo, para ser absolutamente claro, o direito a
dispor da minha vida.
Isto dito vamos às dúvidas e às
perplexidades. A liberdade condicionada não é verdadeira liberdade.
No
quadro de uma decisão tão radical, obviamente irreversível, como é a de
por termo à sua própria vida, esta questão ganha uma importância vital. E
a verdade é que é difícil garantir, em absoluto, os pressupostos para
essa liberdade sem condições. Alguns são óbvios. Como se garante, sem
margem para dúvidas, que alguém está mentalmente são? Como se garante
que não estamos perante um estado de desespero momentâneo? Como se
garante que estamos perante um diagnóstico muito sólido sobre as
perspetivas de vida do paciente? Outros parecem-me menos evidentes (e
não os vejo – ao que julgo saber – endereçados na proposta de lei do
Bloco). Como garantimos que, como sociedade, investimos o suficiente em
cuidados paliativos para que possamos ter a certeza, em face de um caso
concreto, que nada mais pode ser feito, do ponto de vista científico,
para eliminar ou minorar a dor de um doente?
São perguntas para
as quais são necessárias respostas. Mas o meu incómodo vai mais longe.
Não estou seguro de ser capaz de elencar todas as dúvidas relevantes.
Gostava, digo-o com toda a humildade, de ver a minha posição debatida,
contraditada, atacada. Através de um debate prolongado e sereno. Para
reforçar a minha convicção de partida, para a matizar ou, quem sabe,
para a alterar.
Chegamos aqui aquele que me parece ser o cerne da
questão.
O debate suscitado é bem-vindo. Mas é um debate para o qual
não podemos partir com preconceitos fixos. É um debate que não pode ser
transformado num debate de esquerda contra direita. Muito menos num
debate partidário. A eventual despenalização da eutanásia não pode ser a
vitória de uns ou a derrota de alguns. Tem de ser o resultado de um
debate amplo, profundo, tolerante. Para o qual partamos com uma vontade
séria de ouvir argumentos – científicos, éticos, sociais – que não
conhecemos ou com que não pensamos simpatizar.
O crime, o verdadeiro
crime, seria fazer deste debate uma barulheira caótica e apressada em
que ninguém quer verdadeiramente ouvir ninguém. Em que não se abre o
espaço à ponderação, à reflexão, à dúvida como formas de maximizar as
probabilidades de uma deliberação e de uma decisão informadas. Seja
através de um voto no parlamento, seja através de um referendo.
O
meu apelo, se me é permitido fazer um, é que debatamos o processo antes
de debater a substância. Não há razão para que não possa haver um amplo
consenso sobre a forma e os timings como queremos discutir um tema tão
sensível. A decisão sobre a substância separar-nos-á seguramente. É da
natureza da própria problemática. Que não fiquem é dúvidas sobre a forma
esclarecida a que a ela se chegou. Seja ela qual for.
IN "VISÃO"
22/02/17
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