Mestrado em sexo forçado?
Não está nas nossas mãos começar nem terminar namoros alheios,
mas está ao nosso alcance ficar disponíveis para ouvir e conversar sobre
estes temas complexos e delicados, sem moralismos nem devassas.
Más notícias: os namorados violentos e as namoradas perversas
multiplicam-se, são cada vez mais novos e mais agressivos. Deixam marcas
indeléveis, físicas, morais, psicológicas e emocionais, e as suas
vítimas podem ficar com traumas para a vida. No mínimo, ficam com
percepções distorcidas sobre o amor e as relações a dois.
Este mês de
Fevereiro fica marcado por mais um dia dos namorados, mas também por uma
nova campanha contra a violência nos namoros.
“Qual é o teu curso? Licenciatura em maus tratos? Cadeira de
humilhação aplicada? Doutoramento em controlo e ciúmes? Mestrado em sexo
forçado? Exame da maneira de vestir?” eis as questões-chave desta
campanha de sensibilização dos jovens. “Muda de curso! Violência no
namoro não é para ti” é a conclusão imperativa desta acção pública.
Gosto particularmente da metáfora universitária e do duplo sentido
com que os jovens são interpelados a pôr as suas vidas amorosas em
perspectiva. Mudar de curso é o mesmo que dizer: dá outro rumo à tua
vida. Esquece os os namorados e namoradas controladores, ciumentos e que
não te respeitam. Gosto de apelos concretos e definidos porque gosto de
ver as coisas chamadas pelos seus nomes.
Custa admitir que haja cada vez mais violência entre pessoas que
declaram livremente o seu amor uma pela outra, mas é uma realidade que
não podemos ignorar. Os rapazes com inclinação a serem prepotentes e
dominadores no namoro refinam esta atitude com o passar dos anos, e
podem chegar à idade adulta com um histórico tremendo. Fazem estragos
desde muito cedo e perpetuam esse padrão pela vida fora. Por outro lado
há cada vez mais raparigas esquemáticas, capazes de usar esquemas e
estratagemas incríveis para manipular e dominar os parceiros nas suas
relações amorosas.
As vítimas são sempre rapazes e raparigas porventura mais frágeis,
ingénuos, vulneráveis ou desprevenidos, que acreditam no amor e mesmo
quando começam a sentir-se desconfortáveis na relação, têm dificuldade
em admitir que são maltratados e merecem muito melhor do que aquilo que
têm. A fraca auto-estima, a insegurança e a facilidade com que muitos
jovens são capazes de se auto-depreciar favorecem relações desiguais,
com dominadores e dominados.
A violência entre homens e mulheres que supostamente se amam é de tal
maneira crescente que hoje em dia se fazem campanhas dirigidas a jovens
muito jovens, um pouco por todo o mundo. Abundam os ídolos e os padrões
de comportamento bizarros (para dizer o mínimo) pois alguns heróis das
novelas e reality shows são pessoas despidas de tudo, dos
preconceitos aos valores, e é esta gente que marca e inspira grande
parte das novas gerações. Ver alguém agredir ‘por amor’, trair ou
desrespeitar ‘por paixão’, confunde muito. Cenas destas povoam os
programas e séries de televisão e parecem tão naturais no cinema e na
música, entre cantores e actores, que tudo nesta espécie de star system parece um apelo a viver o amor de forma excessiva.
Acontece que a humilhação, o controlo, a desconfiança, o abuso da
força e da supremacia física, intelectual, emocional ou psicológica
jamais serão sinais de amor. Aqui ou em qualquer parte do mundo! Os
namorados que desconfiam, que investigam a vida do outro, que devassam a
sua privacidade e se revelam controladores (e castigadores!) na
intimidade, agindo declaradamente por ‘grande amor’ ou ‘enorme paixão’
destroem sempre o outro. Fazem-no consciente e inconscientemente,
note-se, pois muitas vezes os abusadores foram, eles próprios vítimas de
maus tratos. Seja como for, sempre que alguém se sente maltratado numa
relação por quem supostamente devia ser amado não deve guardar para si
estes maus tratos.
Para um rapaz ou uma rapariga muito jovens pode ser
extraordinariamente difícil perceber os limites dos comportamentos em
estado de paixão. Aquilo que veem no cinema e nas séries de televisão,
aquilo que leem em certos livros ou ouvem em determinadas conversas
(muitas vezes excessivas e sem filtros) pode dar a ilusão de que tudo é
possível quando se está loucamente apaixonado. Aliás, os excessos
acontecem ‘só’ por estarem loucamente apaixonados e esta é uma enorme
fonte de equívocos.
A escalada de violência e o cúmulo de agressões nos namoros pode ser
do seguinte tipo: dás-me a tua password porque te adoro e quero saber
tudo sobre ti; mostras-me as mensagens do teu telemóvel porque quero
saber quem são os teus amigos; vestes-te desta ou daquela maneira porque
eu gosto mais de ti assim; faço-te cenas porque te amo; insulto-te e
ofendo-te porque me provocas; bato-te e humilho-te porque fico fora de
mim quando não fazes o que eu quero; afasto-te dos teus amigos porque
eles não prestam e também não gostam tanto de ti como eu.
Soa absurdo? Parece irreal? Infelizmente estes comportamentos estão
mais alinhados com a realidade-real do que pensamos. E as vítimas podem
ser os nossos filhos, os nossos irmãos, os nossos amigos. Ou pior, podem
ser eles os agressores, os que revelam um desequilíbrio enorme e uma
tentação permanente para controlar os outros.
“Quem te ama não te agride”, diz a campanha que está em curso. É
verdade. Quem ama não agride, não bate, não insulta, não ofende nem
humilha. O problema é que a violência nos namoros nem sempre é física.
Muitas vezes é emocional e psicológica. Passa pela desvalorização do
outro, pela destruição constante da sua personalidade, por uma atitude
de permanente suspeita sobre as suas qualidades, acompanhada de uma
espécie de ‘proteccionismo’ ou paternalismo que indica que ‘apesar de
não mereceres, eu amo-te e fico contigo’. Por outras palavras: ‘nunca
ninguém te amou ou vai amar como eu te amo’.
Por causa desta fábula, homens e mulheres, rapazes e raparigas de
todas as idades podem ficar presos a pessoas que os maltratam
emocionalmente durante anos a fio. Vivem na ilusão de que são amados e
chegam a convencer-se de que é preferível suportar este clima de ciúmes e
desconfiança, esta vivência estranha ‘por amor’ do que separar-se e
ficarem sozinhos. Os abusadores sabem que as vítimas têm medo de ficar
sozinhas, de não serem amadas, e agem em conformidade. O maior medo, o
pavor humano mais temível é esse mesmo: a solidão sem amor. Daí que tudo
pareça preferível a ficar sozinho.
Combater a violência nos namoros passa por campanhas destas, mas
acima de tudo por educar para os valores e por estarmos mais atentos aos
sinais negativos dos namoros dos jovens. Sabemos que é
extraordinariamente difícil para uma mãe ou um pai fazerem-se ouvir
pelos seus próprios filhos em matéria amorosa, até porque eles acham que
sabem o que é melhor para eles e raras vezes levam a nossa opinião em
conta. Se calhar não adianta muito ter ‘conversinhas impecáveis’ sobre o
tema, mas é vital estar atentos aos sinais. Pode ser um alheamento
crescente, uma tristeza que os invade ou uma fase de maior insegurança,
mas também pode passar por alterações súbitas de comportamento e até de
maneira de vestir.
Habitualmente os jovens não percebem logo que o namorado os maltrata,
pois essa consciência aumenta com a recorrência dos factos e quando se
dão conta já estão demasiado envolvidos. Nessa altura ou aceitam que
essa é a forma de expressar o amor, ou começam a ter dúvidas sobre a
natureza dos sentimentos de quem diz amá-los, mas raramente contam em
casa ou recorrem a alguém de fora para pedir ajuda. E é neste ponto que
devíamos tentar ajudar quem nem sequer sabe que precisa de ajuda. Missão
difícil, mas não impossível.
Talvez possamos sublinhar, por exemplo, que o excesso de ciúmes é
sempre destruidor. Talvez possamos ficar, nós próprios, atentos à erosão
que sempre causam os todos os desvios doentios de um amor verdadeiro,
naqueles que nos são próximos. Não está nas nossas mãos começar nem
terminar namoros alheios, mas está ao nosso alcance ficar disponíveis
para ouvir e conversar sobre estes temas complexos e delicados, sem
moralismos nem devassas. Não se trata de ser intrusivo, mas de ficar
nessa linha fina e quase imperceptível que separa a invasão da omissão.
Isto, para que cada vez menos jovens frequentem involuntariamente um
curso inferior com matérias tão perversas e traumáticas como maus
tratos, humilhação aplicada, técnicas de controlo e ciúmes ou sexo
forçado.
IN "OBSERVADOR"
21/02/17
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