RAP deu um abanão
no politicamente correto
As recentes intervenções de Ricardo Araújo
Pereira (RAP) sobre a questão do politicamente correto provocaram
reações abespinhadas de várias pessoas de esquerda. Eu, que sou de
esquerda e estou inteiramente de acordo com RAP, poderia dizer a essas
pessoas que, ao contrário do que pensam, não é só nos países
anglo-saxónicos que existem episódios estúpidos e preocupantes
associados ao politicamente correto. Não esqueçam que no Norte de Itália
um colégio cancelou as festas natalícias para não ofender os alunos de
outras culturas e que em França houve ameaças de morte contra pessoas
(nomeadamente historiadores) que se limitaram a dizer verdades
politicamente incorretas. Saberão as tais pessoas abespinhadas o que foi
o movimento Liberté pour l'Histoire e qual a razão por que surgiu?
Lembrem-se, por favor, que em França já se chegou ao ponto de
criminalizar certas palavras (ou ausência de certas palavras). É claro
que alguns iludem o assunto à partida dizendo que tudo isso é no
estrangeiro e que cá não existem esses picos de fundamentalismo. Mas
estão enganados. Ainda há uns meses houve um burburinho por causa de um
livro para crianças que não respeitaria os cânones do politicamente
correto. Eu próprio escrevi sobre esse assunto aqui no DN.
De
qualquer modo, não é por aí que quero ir. O que quero sublinhar é que a
entrada de RAP neste debate, pela própria natureza da sua profissão e
pela forma da sua crítica, veio pôr um dedo muito visível na ferida que
verdadeiramente interessa. Essa ferida é o humor, ou melhor, a falta
dele. É essa falta que está no âmago da questão. O politicamente correto
e as pessoas que o perfilham não têm humor. Ou, então, perdem-no em
certas circunstâncias. Essa lacuna é decisiva porque é como a ausência
de uma enzima que lhes permitiria digerir aquilo que é comida habitual e
robustecedora para os outros estômagos. Há racismo? Sem dúvida. E
homofobia? Claro que sim. Mas também há formas de dizer "negro" ou
"preto" ou "maricas" sem ser para humilhar ou ofender e num registo de
brincadeira ou de descrição ou evocação de época. Mas os cultores do
politicamente correto não têm os sensores para discernir estas nuances.
Não conseguem separar as águas. A sua reação a certas palavras ou frases
é tão rígida, tão escandalizada, que ficam pela superficialidade da
forma e não chegam ao que está subjacente, ou seja, ao conteúdo e,
sobretudo, à intenção com que as coisas são ditas ou escritas. Como não
têm as tais enzimas para digerir as palavras mais picantes, acham tudo
indigesto, e, portanto, querem condenar e banir tudo por atacado. Em
consequência, cercam a sociedade (o tal "ambiente cultural" de que RAP
nos fala) de uma série de normas e interditos que são autênticas
vedações de arame farpado: tem de se dizer assim; não pode dizer-se
assado; etc. Para além disso, são apologistas da censura e da punição.
Vejam como Isabel Moreira, por exemplo, decretou de imediato, em artigo
no Expresso, que RAP era de direita, pois defendia que a
liberdade de expressão era um valor supremo. Vejam como o expulsou da
área política da esquerda, de que ela, certamente, se acha sacerdotisa e
guardiã. Eu percebo o nervoso indignado da deputada. É que os piores
inimigos de todos os fanáticos zeladores da linguagem são os humoristas,
não apenas porque contornam as proibições que lhes metem à frente mas
também porque, ao caricaturarem, acabam por desmontar facilmente a
palermice e o exagero de muitos mandamentos do politicamente correto.
Lembram-se de Jorge de Burgos, uma das personagens do livro (ou do filme) O Nome da Rosa?
Refiro-me ao velho monge cego que controlava a biblioteca, proibindo o
acesso a certas obras e o uso de determinadas palavras, nomeadamente das
que faziam rir, pois, dizia ele, os santos não riam, o riso era coisa
do demónio. É quase certo que se vivesse no nosso tempo o venerável
Jorge seria um cultor e um dos mais férreos defensores do politicamente
correto.
Historiador e romancista
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
28/12/16
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